segunda-feira, 7 de abril de 2014

Platonismo e Aristotelismo em Bizâncio (parte I)

O texto abaixo dará sequência a um texto de quatro partes, acerca da influência do Platonismo e do Aristotelismo em Bizâncio. O texto abaixo é uma tradução do capítulo XIV do magistral livro Christian Philosophy in the Patristic and Byzantine Tradition de Basil Tatakis, cuja tradução foi feita do grego para o inglês por George Dion, que também editou o livro em 2007 (págs 1 a 14). Estou aqui oferecendo uma tradução do texto em inglês, ou seja, uma tradução de uma tradução e espero que isto não se ofereça como um malefício para os leitores em língua portuguesa e sim como um meio de divulgação de ideias, propósito implícito a este mundo cibernético.
Conhecer a influência do aristotelismo e do platonismo no cristianismo bizantino nos permitirá compreender como se deu este intercâmbio entre a Filosofia Grega e o pensamento Cristão e de que modo também o cristianismo não pode não ser compreendido sem termos em conta esse encontro entre Atenas, Roma e Jerusalém.

Platonismo e Aristotelismo em Bizâncio (parte I)

1) Introdução.
A influência da filosofia Platônica e Aristotélica na formação do cristianismo, e especialmente no Pensamento Bizantino, foi muito considerável. De fato, foi tão grande que os historiadores da filosofia viram completamente o todo do período Bizantino e ainda hoje o vêem, simplesmente como um intercâmbio de elementos Aristotélicos e Platônicos desprovidos de qualquer interesse especial. Eu acredito que a  investigação que temos até agora em certa medida demonstrou que o elemento essencial no pensamento cristão e bizantino não é esta ou aquela influência, ou posição neles contida, mas sua nova orientação, sua nova metafísica. Nós observamos isto em capítulos prévios, onde nós discutimos "o problema da predestinação e a auto-determinação". Neste novo capítulo, vamos investigar um pouco mais de perto o significado que a filosofia de Platão e Aristóteles tinha para os Bizantinos, incluindo o movimento filosófico que foi causado por eles e a originalidade que este movimento apresenta.
Antes de tudo, nós necessitamos aclarar o contexto histórico. Platão e Aristóteles sempre foram familiares para os cristãos do Oriente Grego, especialmente o primeiro, e eles foram se tornando cada vez mais familiares com o passar do tempo. Isso durou por todo o período Bizantino. Sua entrada no pensamento bizantino ocorreu em dois sentidos, indiretamente e diretamente. Ele ocorreu indiretamente através do Neoplatonismo, e diretamente a partir de muitos textos de filósofos, os quais, ao que parece, os bizantinos nunca deixaram de estudar.

2) O aristotelismo e platonismo do neoplatonismo
Vamos dar uma parada em primeiro lugar no aristotelismo e platonismo do Neoplatonismo. A principal posição de Plotino foi que Platão constituiu a principal raiz e tronco da filosofia. Cremos que uma interpretação de Platão foi suficiente para dar uma resposta a todas as questões e problemas que surgiram na mente. Os pensamentos de Plotino são tecidos em torno desta posição, quando ele tenta responder a perguntas que lhe foram colocadas pelo seu público-alvo e seus discípulos. Ele se volta aos textos platônicos tão frequentemente que sua filosofia aparece em última análise ser um comentário destes textos. Plotino, porém, é  um comentador tão genial que ele cria com sua interpretação uma nova escola filosófica. Para persuadir a todos que Platão foi o filósofo e o tronco da verdadeira filosofia, ele defendeu a visão de que não houve fosso intransponível entre Platão e Aristóteles. Estes dois filósofos complementaram um ao outro, e isto se aplicou especialmente ao último, que foi um complemento necessário ao primeiro.
Esta posição permitiu Plotino mover-se com facilidade entre os dois grandes filósofos, voltar-se para a visão de ambos e tentar construir uma síntese harmônica de suas filosofias, deixando de lado suas diferenças essenciais. O fato, é claro, é que há diferenças em essência e no método entre estes dois filósofos, mesmo que ambos sejam representantes do idealismo.

3) Neoplatonismo e Cristandade- Como sabemos, o neoplatonismo manteve-se como um firme inimigo da Cristandade. Seu principal objetivo foi satisfazer as inquietudes de seu tempo, voltando-se, porém, para a mais genuína artéria Grega, como acreditou-se, que era para ser encontrada em Platão. Foi uma inquietude análoga, ou a mesma, que os pensadores cristãos buscaram satisfazer. De fato, como vimos, quando falamos sobre Justino e Agostinho, o cristianismo pensou ter trado dela de uma maneira muito eficaz. Isto baseou-se no fato de que a Cristandade não era uma mera teoria, um problema teorético, mas uma fé e ato por meio dos quais poder-se-ia alcançar uma verdadeira e completa conversão de alma.
O fato de que tanto o Neoplatonismo quanto a Cristandade terem se voltado para uma inquietude análoga cria uma afinidade entre eles, a despeito de sua hostilidade e antítese. Embora os seus olhos permanecessem sempre atentos com relação à raiz pagã e anti-Cristã do Neoplatonismo, os Padres Cristãos permitiram que o idealismo Neoplatônico imbuísse seu pensamento. O movimento da alma das coisas sensíveis da matéria para o mundo inteligente, tanto quanto seu retorno da mente e o UNO, foi algo que os moveu e os encantou.

4) O neoplatonista Juliano, o Apóstata, e a Cristandade- Ao mesmo tempo, a Cristandade exerceu uma influência nos neoplatonistas. O grande oponente dos cristãos, o neoplatonista Juliano o apóstata, reconheceu que a Cristandade beneficiou sua atividade filantrópica: "O ateísmo (que é a Cristandade)", ele diz, "cresceu por causa de sua filantropia com relação aos estrangeiros e pelo cuidado que tinham no sepultamento dos mortos" (Juliano Apóstata, Epistles, 847f. in J. Bidez (ed), Le empereur Julien: Oeuvres completes, vol. 1.2, 2nd. ed., Les Belles Lettres, Paris 1960). Por conseguinte, ele recomendava aos pagãos que agissem de um modo similar. Ele escreveu ao sumo sacerdote pagão da Galácia: "Deve-se estabelecer hotéis em toda cidade de modo que os estrangeiros possam gozar de nossa filantropia, não apenas aqueles que pertencem a nós, mas também aqueles outros que podem estar em necessidade de dinheiro". (Ibid. 84.23). "Acima de tudo", ele acrescenta, "você deve cuidar da promoção da filantropia, pois ela incorre em muitos bens e acima de tudo garante o favor dos deuses." (Ibid. 89b24f). Juliano não entendeu que a filantropia dos Cristãos era consequência necessária de sua teologia a qual deu nascimento à formação de um novo homem. Seu texto, porém, é um eloquente testemunho da radiação da Cristandade mesmo entre círculos pagãos.
Lembremo-nos novamente que o pensamento cristão e o pensamento neoplatônico cresceram juntos e foram moldados juntos no mesmo grande centro e caldeirão cultural de Alexandria. Foi lá que Amônio de Sacas, o primeiro neoplatônico, viveu e ensinou e também lá que Plotino tornou-se seu pupilo. Ao mesmo tempo, nós temos em Alexandria a grande atividade da escola catequética com Clemente e Orígenes. O último, especialmente, foi ensinado por certo Amônio que, de acordo com a maioria dos historiadores, foi idêntico a Amônio de Sacas. Todos estes fatos junto ao aparecimento e aceitação das obras de Pseudo Dionísio o Aeropagita, com um notável selo neoplatônico, indicam o papel do neoplatonismo na formação do pensamento cristão. O Neoplatonismo traz consigo, como vimos, tanto Platão quanto Aristóteles. Isso contribuiu para a entrada indireta desses dois filósofos ao cristianismo.

5) Platonismo, aristotelismo e cristandade- Examinaremos agora a entrada direta do Platonismo e do Aristotelismo no pensamento cristão. Quase não há nenhuma trabalho bizantino com conteúdo filosófico ou teológico em que não possamos encontrar não apenas ecos de Platão e Aristóteles, mas também algum tipo de adoção ou criticismo, ou mesmo rejeição de suas posições filosóficas. Sua influência não está restrita apenas ao conteúdo mas inclui também a forma. Os poucos estratos de João Damasceno que nós citamos no capítulo anterior mostram, como c remos, que ele seguiu a articulação da razão aristotélica. Ele quer ser denso e apotegmático, mas também de uma maneira analítica e sistemática. A adoção da forma aristotélica de argumentação e articulação de pensamento é mais clara ainda nos aristotélicos do século XII Miguel de Éfeso, Eustrátio de Nicea, Nicolas de  Methone e outros.

6) Diálogo Platônico Cristão - Ao mesmo tempo, porém, a atração exercida pelos diálogos platônicos foi igualmente grande. Durante o quinto e sexto séculos, nós tivemos muitos diálogos interessantes, baseados no Protótipo dos platônicos, escritos pelos cristãos em defesa das posições cristãs. O mais importante entre eles é o diálogo de Aeneas o de Gaza (sexto século), trazendo o título Teofrastus, ou acerca da imortalidade da alma e da ressurreição do corpo, e o diálogo de seu amigo Zacarias de Gaza, bispo de Mitilene, trazendo o título, Amonius, ou acerca da criação do mundo. Nós vamos nos concentrar por um curto momento na primeira obra, onde sentimos uma presença ininterrupta de Platão. Ela não está destituída de qualquer forma platônica, ou ethos ou fluxo natural de análise.
Há três personagens principais neste diálogo: o egípcio, Teofrasto (que fala sobre Deus) e Euxitheos (aquele que ora a Deus). Teofrasto é o sábio que sabe todas as coisas: "Por anos até agora", ele diz com orgulho, "ninguém me perguntou qualquer coisa que pudesse introduzir qualquer questão nova para mim" [Esta é uma frase que vem do Górgias de Platão]. Assim, o Górgias Platônico ou Euxitheos são descritos imediatamente diante de nossos olhos. Teofrasto imediatamente encontra ocasião para revelar sua sabedoria. Mas vemos que esta sabedoria é inteiramente derivada dos livros, ou, em outras palavras, é livresca. "Veja", ele diz e diz novamente, "o que os velhos mestres me ensinaram!". Esta afirmação está cheia de ironia para com os filósofos contemporâneos pagãos de Aeneas e sábios que, em sua própria opinião, simplesmente se restringem a repetir sempre e mais outras vezes todas as posições dos antigos e são incapazes de ver o que lhes acontece ao redor. Há, de fato, alguma coisa nova que Teofrasto declara como algo desconhecido para ele, que afirma conhecer de tudo, posto que diante de seus olhos, há a verdade cristã. Ele não necessita nada além do que abrir os olhos e vê-la. E isto é de fato o que ocorre no final do diálogo.
Por outro lado, Euxitheos, que representa o autor do diálogo, é suposto ter vindo da terra da Síria, em outras palavras, do lugar da nova luz. Ele quer ir a Atenas para estudar aos pés dos filósofos o problema da sobrevivência da alma.  Em Alexandria, pois esta é a cena do Diálogo, ele se depara com o filósofo ateniense Teofrasto que julga isso ser um sinal de grande fortuna, de oportunidade de iluminação. Euxitheos aparece com a ironia Socrática como uma pessoa ignorante que deseja ser ensinada. De fato, porém, ele é alguém que deseja ensinar aos demais.
Através destes meios simples e sabiamente estudados, Aeneas avança com muitas ideias. Não há nada redundante neste diálogo, nem os nomes, nem o lugar. É na terra do Egito, em Alexandria, onde a batalha acontece entre a sabedoria de alguém que se apresenta como um grande nome (Teofrasto) e a fé de Euxitheos que está sujeita a Deus - o nome Euxitheos aponta para a oração, ou ainda, para a oração incessante que é uma das poucas características que aparecem na vida dos Cristãos.
Mais tarde, nós também encontraremos diálogos filosóficos em Bizâncio, desde o século XI em diante, durante o novo período de revivência dos estudos gregos, especialmente em Gregoras e outros. Durante este período, os autores gregos que são sempre familiares a Bizâncio tornam-se mais e mais populares e exercem uma influência de alto grau na vida espiritual dos bizantinos. Um exemplo característico do amor pelos autores clássicos é fornecido no século XI por João Mauropous, que mais tarde tornou-se bispo de Euchaita, que mais tarde instituiu a festa dos Três Hierarcas e das Letras Gregas. Em uma brilhante hinografia, além de outras habilidades, ele implora a Cristo em um de seus epigramas que tenha piedade de Platão e Plutarco, porque ambos com seu pensamento e alma estavam muito restritos às leis que pregaram.
A influência, porém, do raciocínio platônico é apenas aparente em trabalhos que não estão na forma dialógica, como nos tratados filosóficos de Demétrios Kydonis (século XIV). Quando se lê seu tratado sobre o dictum "o temor à morte é irracional" é provável ser ludibriado, pensando ler páginas platônicas. Isto ocorre não apenas por certa afinidade de pensamento.
O que temos falado até agora são elementos externos e descritivos. Eles mostram os sentidos que Platão e Aristóteles seguiram até chegarem a Bizâncio (se diretamente ou indiretamente) e o prestígio que eles sempre gozaram. Qual atitude, porém, os bizantinos adotaram diante deles, o que tais filósofos representaram para eles, e qual significado convinha a eles, ou novamente qual movimento filosófico foi causado por eles? Estes são os tópicos que queremos investigar, nos voltando a alguns dos mais importantes amigos bizantinos e admiradores dos dois grandes filósofos da antiguidade.

7) O estudo de Aristóteles - É necessário, porém, primeiro fornecer alguns dados que reconheçam o processo e a forma que o texto aristotélico foi tomado. Isto é fundamental para o melhor entendimento não apenas da filosofia bizantina, mas também da árabe e da ocidental.
Já no ano 50 A. C , isto é, no tempo em que o filósofo peripatético Andrônico de Rodes fez a primeira edição dos trabalhos de Aristóteles, os aristotélicos - a despeito de se voltarem para a investigação e o desenvolvimento das ciências da Natureza, seguindo o método de seu mestre, como já tinham feito outros aristotélicos (Teofrasto, Strabo) - começaram a se ocupar eles mesmos primariamente com a investigação do correto significado das palavras de Aristóteles. O mestre ergue-se diante deles como a única autoridade. Daquele tempo em diante, uma longa e sem fim linha de comentadores começa a constituir um único fenômeno na história da filosofia por conta de sua extensão. Tem-se também comentários a Platão, mas não com a mesma extensão. O renascimento do aristotelismo não se tornou ocasião para uma nova filosofia, como aconteceu com o caso do platonismo através de Plotino, mas deu surgimento a um estudo sistemático da obra aristotélica, unido proximamente ao seu texto.
Nós podemos então corretamente perguntar, por que existiram tantos comentadores de Aristóteles? Ora, a resposta é relativamente fácil. Foram produzidos comentários a textos que deixaram de ser imediatamente acessíveis, em outras palavras, acessíveis sem comentários, e que obviamente não deixaram de apresentar grande interesse. Novamente, produziu-se comentários a textos que não apresentavam sempre a clareza desejável. Este é frequentemente o caso de Aristóteles, que não fala com muita exatidão. Este é, de fato, o que um comentarista bizantino muito importante, o perspicaz Theodore Metochites (século 14), tem contra Aristóteles com veemência e nitidez sem, contudo, deixar de admirá-lo.
Não há outra razão particular que torne a produção de comentadores nos trabalhos de Aristóteles tão necessária. Os trabalhos de Platão são, em última análise, palavras de admoestação à filosofia. Eles são meios de conduzir a alma a criar uma atmosfera filosófica, que se possa sentir a qualquer momento, ou eles convidam à sua participação ativa, ou chamam a abrir os horizontes que constantemente aparecem diante de nós. São trabalhos endereçados a treinar os olhos ou a amadurecer a mente. Eles pressupõe certa preparação sem a qual não são produtivos. Em outras palavras, os trabalhos de Platão não são destinados a fornecer elementos filosóficos ou base de conteúdo ou método. A dialética platônica é muito mais do que um método, porque ela representa uma operação intelectual elevada de acordo com a qual a mente, a razão, visualiza suas questões de modo a remover antíteses, ou a reconciliar antinomias.
Pelo contrário, os trabalhos de Aristóteles, com sua sistemática, seu procedimento didático e metódico, são muito mais apropriados enquanto livros texto, preciosos pela introdução e ensinamento de filosofia. Assim, para os primeiros séculos depois de Cristo, eles se tornaram textos necessários, nas escolas filosóficas, em estilo de livros texto, par excellence. Esta é a razão da necessidade da produção de comentadores da obra aristotélica ter se tornado tão grande.

8) Os comentários aos trabalhos de Aristóteles e seu valor - Outra questão para as quais nós devemos nos voltar é se este laborioso trabalho dos comentadores apresenta qualquer interesse especial para a História da Filosofia. Nossa resposta, sem qualquer hesitação, seria afirmativa. Em primeiro lugar, os trabalhos deles estabeleceram certas maneiras de apresentar problemas, ou de classificar ideias que são ainda difundidas em toda a Filosofia Contemporânea. Não se trata aqui simplesmente de comentários relacionando dados linguísticos, mas a uma interpretação filosófica de um texto dado. Este tipo de trabalho sempre traz em seu interior um elemento de criatividade. O comentador que tenta por uma série de argumentos compreender o correto significado do texto chega frequentemente, em reconhecimento ao mesmo conteúdo, à conclusões idênticas a de seus predecessores. Isto acontece porque interpretação não é uma tarefa matemática, mas um procedimento que exige a participação do intérprete, ainda que se possa querer objetiva. Por esta razão, os comentários sobre Aristóteles apresentam um duplo interesse para nós hoje. Antes de tudo, eles nos ajudam em muitas ocasiões entender o texto, e em seguida eles nos apresentam um novo Aristóteles, alguém que é fruto de seu próprio construto e que em muitos e importantes pontos é diferente do Aristóteles real, já que ele representa o Aristóteles de suas próprias filosofias.
Certos fatos históricos nos mostrarão em melhor sentido o que está sendo dito. Em primeiro lugar, o ensinamento universitário dos textos aristotélicos resultou na imposição das perspectivas do estagirita acerca do método, na medida em que este é o contorno de sua produção racional, seja qual for o tipo de investigação, se científica, filosófica ou teológica. De fato, na era bizantina, esta metodologia, que passou pelo nome de dialética, chegou a ser idêntica à filosofia. Tal visão tem sua própria profundidade. Isto mostra que os bizantinos não estavam procurando descobrir a essência das coisas na base de um ensinamento filosófico (esta essência foi dada a eles pelos ensinamentos cristãos), mas simplesmente desejavam métodos ou meios técnicos de modo a conseguir formular sua própria essência. É a filosofia vista deste ângulo que se torna serva da Teologia.
Há outro fato histórico que é igualmente importante. Os comentários mais antigos que possuímos são aqueles de Alexandre de Afrodísia [(final do século II D. C) --> W. D. Ross, Aristotle's Metaphysics, vols. 1-2, Clarendon Press, Oxford, 1970]. Eles relatam a Metafísica de Aristóteles e principalmente outras produções que têm a ver com lógica. Um dos problemas mais difíceis da interpretação de Aristóteles foi como ele entendeu as noções de 'mente' e 'percepção'. A resposta que Alexandre de Afrodísia dá mostra muito claramente como, conforme dito previamente, interpretação é também uma nova criação. Há quatro operações da mente que são distinguidas por Aristóteles por seu intérprete. Três delas correspondem a certas faculdades da alma, mas a quarta delas era pura atividade, a percepção da percepção (νοησις  νοήσεως), isto é, o Deus de Aristóteles. Alexandre, deste modo, chega à conclusão que é Deus quem coloca em movimento nossa atividade de percepção. Conhecimento não é "uma visão em Deus" (όρασις  εν  τω  θεώ), uma edificação da mente para Deus a fim de se ver as coisas que existem em Deus (a visão platônica ou neoplatônica), mas uma visão através de Deus (δια  τού  θεου). Aristóteles naturalmente não diz tais coisas atribuídas ao seu intérprete, que deste modo cria um novo Aristóteles capaz de satisfazer a ansiedade particular da época de Alexandre. Durante este mesmo período, os neoplatônicos dão a Platão um novo caráter, primordialmente teológico. Alexandre de Afrodísia faz exatamente a mesma coisa com Aristóteles. Ele estuda a natureza do conhecimento intelectual e de seu objeto, e o traz à teologia, ao invés de fazer como os comentadores mais antigos, para a ciência. Em linhas gerais foi esta a guinada do pensamento para Deus naquele tempo.

9) O desenvolvimento histórico dos comentadores de Aristóteles --> Faremos agora um breve relato da história dos estudos aristotélicos. tentaremos, de fato, dar uma diagrama geral desta história da Filosofia no tempo da Renascença. Outro comentador importante de Aristóteles, além de Afrodisias, foi, por outro lado, Porfírio, discípulo de Plotino. Seu livro Introdução ao Estudo das Categorias (είσαγωγή) , manteve-se como um importante texto tanto para o Ocidente quanto para o Oriente. A dialética dos Bizantinos derivou principalmente deste trabalho. Tivemos tanto Themistios e finalmente Simplicius entre seus comentadores principais. Estes três comentadores foram todos neoplatônicos e, inclusive, nos ofereceram um Aristóteles colorido com tonalidades neoplatônicas.
Do século quinto em diante, os textos de Aristóteles e seus comentários começaram a ser traduzidos para a língua Síria. A Síria tinha naquele tempo centros espirituais significativos como a Escola de Edessa e alguns mosteiros famosos. Mais tarde, os mesmos textos foram traduzidos para a língua árabe. No início do nono século um califa erudito de Bagdá, como Mamum e Harun al Rashid, estabeleceram em suas capitais um especial serviço de tradução. Assim, lá pelo início do século nono, os árabes tinham a sua própria linguagem de Aristóteles além de sua Política e de todos os seus comentários, que nós mencionamos, bem como outros mais recentes de Philoponos.
Um árabe podia também ter em sua biblioteca, ao mesmo tempo o Timeu  de Platão, a República e o Sofista e da medicina Grega os trabalhos de Galeno e dos astrônomos gregos o Al Magesta , o grande trabalho de Ptolomeu (a composição astronômica) e alguns outros trabalhos. Aparte isso, há também alguns textos bizantinos muito importantes como os trabalhos de Philoponos e de João Damasceno.
Estas traduções constituem um evento histórico muito importante. Eles claramente mostram para nós os primeiros materiais em que uma civilização inteira foi fundada e formada, a saber a civilização árabe, incluindo sua ciência e filosofia e mesmo suas artes. Os árabes exibiram, ao mesmo tempo, uma grande sede de aprendizagem. Sua sede foi saciada com os autores Gregos e Bizantinos. Mencionarei aqui uma anedota muito eloquente, ainda que ela não seja diretamente relevante para nosso assunto específico.

10) Os árabes e Bizâncio- Durante o nono século, quando Teófilo (o Iconomach) foi o Imperador de Bizâncio (829-842), os sábios homens de Bagdá concluíram em um de seus encontros que era impossível para eles resolver um certo teorema de geometria. Então, um bizantino que se encontrava próximo apresentou-se e disse que se eles permitissem a ele, ele poderia conseguir uma solução. Quando a permissão foi dada, de fato, ele conseguiu a solução deste teorema afirmando ainda que poderia conseguir ainda soluções de outros teoremas ainda mais difíceis. “Onde você aprendeu estas coisas?”, perguntaram-lhe.   Ele então disse ser discípulo de um sábio matemático de Bizâncio chamado Leo. Então, Califa Mamun enviou um convite a Leo para ir a Bagdá e ensinar matemática. “Se vieres” , ele lhe escreveu, ‘toda a raça dos Sarracenos se prostrará diante de vós e vós ganhareis riquezas e presentes que nem mesmo os humanos gozaram”. Teófilo não deu a Leo permissão de ir. De preferência, ele nomeou-o professor da Alta Escola de Constantinopla. Mamun continuou insistindo e escreveu o assunto ao próprio imperador, deixando a clara impressão de que ele reconheceria a condescendência do imperador como indicação de um favor, e lhe prometeu em retorno estabelecer uma paz contínua e enviar-lhe dois mil quilos de ouro. Teófilo novamente recusou. Deve-se levar em consideração os eventos amargos e sangrentos envolvendo guerras entre os árabes e os bizantinos e a competição destas duas raças para compreendermos a atitude de Teófilo. Esta anedota não mostra apenas a sede dos árabes por conhecimento, mas também o brilho de Bizâncio e um de seus melhores momentos.

11) Como os árabes viam Aristóteles—Veremos agora como os árabes viam Aristóteles. Em torno de 840 d. C. uma seleção de textos das Eneadas de Plotino foi traduzida ao árabe com o título Teologia de Aristóteles! Na introdução desta seleção, a visão que foi defendida era de que as quatro hipóstases de Plotino (o Uno, o Nous, a alma e a matéria) correspondiam a quatro causas de Aristóteles (final, aquela do movimento, material e aquela que cria). Ao mesmo tempo, outro  pseudo-aristotélico trabalho é traduzido como se fosse aristotélico, contendo extratos dos elementos da teologia de Proclus (quinto século). Assim, a filosofia árabe na medida em que segue os Gregos, enquanto esteve interessada em Aristóteles, não o seguiu diretamente e sim através de textos neoplatônicos! Isto, de fato, é um estranho agrupamento destas duas instâncias filosóficas; por um lado, aquela de Aristóteles, cuja mente racionalista e empirista usa a orientação lógica e positiva do pensamento e por outro lado aquela do Neoplatonismo, que se apresenta como uma mitologia dos poderes espirituais nos quais todo o universo parece estar mergulhado e que pode apenas percebê-lo como um insight. Há, porém, uma característica do espírito árabe de ser capaz de facilmente mover-se da tese espiritual para a antítese, em outras palavras, para adaptar-se e ser adaptado. Ela apresenta uma curiosa forma de sincretismo. Deste estranho casamento do aristotelismo e do neoplatonismo, a filosofia árabe surgiu, em muitos dos seus pontos, como um comentário e nova interpretação de Aristóteles.

12) A Introdução de Aristóteles ao Ocidente- Adicionaremos aqui que os Ocidentais começaram a se familiarizar com Aristóteles do século 12 em diante (isto é, com textos, comentários e interpretações  aristotélicos) quase ao mesmo tempo que os árabes da Espanha e de Constantinopla. Em 1210, a Metafísica de Aristóteles foi lida em Paris, tendo sido comprada lá de Constantinopla e traduzida ao Latim. Neste momento o primeiro grupo de Helenistas formado no Ocidente foi formado, o qual traduziu quase exclusivamente os trabalhos de Aristóteles em um sentido literal e quase incompreensível. De seu interesse pelas obras de Platão, traduziram o Fédon e o Ménon. Nós podemos entender o imenso significado desta peregrinação e transplantação de Aristóteles da Grécia para Bizâncio e deles para os árabes e destes dois últimos para o Ocidente.
Já que chegamos ao Ocidente, devemos parar aqui por um momento. Quando Aristóteles bateu em suas portas, os ocidentais, que  estavam a pouco tempo sedentos por conhecimento e sabedoria, já tinham desenvolvido algum movimento filosófico. Foi com esta sede que eles tomaram em suas mãos os primeiros textos de Aristóteles, sem, no entanto, estarem em posição de entendê-lo e julgá-lo. O que lhes faltava acima de tudo era um sentido histórico necessário, que lhes permitiria localizá-lo no contexto daquele tempo, e, consequentemente, entende-lo propriamente.  Então, foi dado a eles, como dissemos, em larga medida, uma forma corrompida. Aristóteles, surpreendeu os ocidentais do modo como ele negociou seus problemas, um modo que era completamente estranho ao seu próprio entendimento teológico e num sentido que os lançou em confusão. Tal foi a confusão ou rebuliço criado pelo estudo de Aristóteles que o próprio papa proibiu o estudo da Metafísica e o da Física, ou perguntou pelas edições que podiam ser removidas daqueles textos que pareciam estar em oposição aos dogmas da Igreja. Porém, uma vez que a autoridade de Aristóteles e a sede dos Ocidentais pelo conhecimento aumentou mais e mais, a Igreja ocidental deixou de condenar Aristóteles, e condenou somente aqueles que extraíssem dos textos de Aristóteles ensinamentos que contradissessem a fé cristã. Assim, uma longa história começou no Ocidente de cristianização de Aristóteles, que marcou-se pela busca de encontrar nele armas, não contra, mas em defesa da Cristandade. À altura deste movimento encontramos São Tomás de Aquino.
Aquino se comprometeu a demonstrar que enquanto a filosofia aristotélica era, de fato, autônoma e independente do dogma cristão, ela, de fato, concordava com ele.  Esta percepção conduziu-o a seguinte conclusão: o que é filosoficamente verdadeiro também o é para a Cristandade. Assim, então, a verdade filosófica e a Cristandade se alinham. É digno de nossos tempo observar que Aristóteles deu ao Ocidente a oportunidade para criar uma nova filosofia. Isto porque Aquino, ao interpretar Aristóteles deste modo, era, de fato, capaz de estabelecer um pensamento aristotélico, uma nova filosofia.
A partir de então, até o século 15, a autoridade de Aristóteles dominou o movimento filosófico ocidental, naquilo que é conhecido como “Escolasticismo”. Em seu trabalho os Ocidentais, como os árabes antes deles, foram significativamente assistidos pelos bizantinos, especialmente por João Damasceno, cujos primeiros trabalhos, no qual uma orientação análoga para a reconciliação de fé e razão é apresentada, foram estudados e usados acima de tudo por Tomás de Aquino. Tomás de Aquino foi também grandemente assistido pelos comentários de Philoponus sobre a obra de Aristóteles De Anima,  que constituiu um problema central para a sua própria síntese filosófica. A prova disto é que Tomás de Aquino incluiu em seu trabalho quase um comentário inteiro de Philoponus. O brilho filosófico de Bizâncio para o Ocidente não foi adequadamente estudado. Destas indicações, porém, e de outras que possuímos, parece claro que este brilho foi muito significativo.
Não é estranho para a origem de nossa questão ter falado sobre os árabes e os ocidentais. O que foi dito no primeiro exemplo indicou o transplante do espírito grego e bizantino para a Arábia, onde uma nova interpretação de Aristóteles foi desenvolvida. Então, mais tarde, nós mostramos que tipo de atmosfera foi criada no Ocidente com o quase exclusivo uso de Aristóteles, que nos ajudou a apreciar tanto quanto deveríamos a última grande contribuição espiritual de Bizâncio para o Ocidente;  eu quero dizer, obviamente, do movimento que foi representado por Plethon e Bessarion (século XV) sobre o qual iremos falar mais adiante.