domingo, 6 de novembro de 2016



  Inscrições:

http://www.imub.org/course/estudos-sobre-o-cristianismo-bizantino-curso-on-line-gratuito/

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Platonismo e Aristotelismo em Bizâncio III

Continuação dos posts anteriores.
TATAKIS, B. N Christian Philosophy in the Patristic and Byzantine Tradition. Orthodox Research Institute, 2007, pag. 245.

Capítulo 16.




1) O Trabalho e contribuição de Miguel Psellos. Após as características gerais do curso do platonismo em Bizâncio a partir e além de Psellos, nós chegaremos a ver mais estreitamente o trabalho de Psellos de modo a entender melhor esta nova e muito importante volta da filosofia bizantina.
Já a partir do século nono, começa a aparecer um círculo de amigos fervorosos e admiradores da educação grega e de Platão. Entre eles uma posição distintiva é ocupada pelo Bispo de Cesaréia Arethas, um discípulo de Fócio e de Leo O Matemático. Arethas compartilhou um interesse especial pela preservação dos escritos de Platão. Dele é o famoso códex que contém o melhor texto dos trabalhos Platônicos e outros que preservam outros autores significantes, como o matemático Euclides, Clemente de Alexandria e outros. As margens de todos os seus manuscritos clássicos são decorados com suas notas feitas por sua própria mão, que são importantes porque eles mostram a familiaridade dos intelectuais daquele tempo com os autores clássicos. Este movimento pro-platônico alcança seu pico com Psellos (1018-96).
Antes que falemos sobre as visões filosóficas, nós interromperemos outro ponto interessante. "Antes que eu chegasse a estudar filosofia", diz Psellos, "eu estava enamorado com a retórica". Este amor o acompanha através de sua vida. Psellos se orgulha de ser diferente dos outros, porque ele sabe como não se deve negligenciar a ciência quando ele compõe uma oração usando todos os floreios da composição literária e o maneirismo retórico quando ele desenvolve uma questão filosófica. Ele diz de si mesmo combinar filosofia com retórica, e toma o cuidado de adaptá-los com a ajuda de ambas. Em outras palavras, ele está interessado não só no conteúdo, mas na forma, procurando harmonizá-las.
O cuidado com o estilo, ele diz, não é um obstáculo para a virtude. Psellos quer ser um bom estilista e ele o é, de fato. Ele tem um estilo muito ilustrativo. Seu amor pela retórica, porém, não o empurra para a atitude unilateral dos retóricos que condenam a filosofia. Você deve, ele escreve a um padre que procura seu conselho, colocar-se entre as duas fontes, a filosofia e a retórica, e deixar-se embebedar de ambas, cada uma a seu modo. De outro modo, você fará da sua mente uma criança desprovida de língua, se estudar apenas filosofia, ou uma língua desprovida de mente, no caso oposto.
Mas a filosofia e a retórica não são, para Psellos, fins últimos. Elas são meios. Nenhuma delas são suficientes para formar um ser humano plenamente, torná-lo completo, como diríamos hoje, se a ciência da política não adicionasse algo a elas. Se isto não acontece, então os homens com toda a sua retórica e filosofia serão apenas 'címbalos que tocam'. Não nos parece disso tudo que ele já esteja no clima de Platão?

2. O estilo literário de Psellos. Foi porque Psellos pensava deste modo que na universidade que foi organizada por Constantine Monomachos que ele foi chamado o "supremo dos filósofos" que ele não se restringiu apenas à filosofia, mas também alcançou aquelas questões que se relacionavam com o estilo. Sua proposta é dar aos seus discípulos as regras da retórica, mas aquelas que apenas brilham, sendo vazias, mas a retórica como a quis Platão. Seu guia nisto era Platão e Aristóteles. Isto mostra que Psellos tinha uma mente aberta (ele tinha, de fato, a mente mais católica de Bizâncio), que procurou investigar minunciosamente tanto a essência quanto a forma das coisas. Para formar seu estilo, ele estudou, além dos poetas, Tucídides, Platão, Plutarco, Lísias, Demóstenes, Isócrates e também os gramáticos gregos, que tratam deste problema. Deste modo, ele conhece o estilo especial de cada um e reprime aqueles que comparam Platão com Lísias e Tucídides. Platão, ele diz, é divino, mas é difícil para alguém imitá-lo; mesmo as partes que são mais claras, e que nos aparecem como acessíveis são, de fato, muito elevadas e profundas; se a ele não tivesse se oposto Gregório o Teólogo, que foi grande na eloquência e na virtude, "eu teria dito", ele adiciona, "que Platão jaz além de qualquer comparação". Ele está absolutamente certo e cônscio destas palavras. Seus estudos acerca do estilo o persuadiram que na arte do discurso, o estilo gracioso não é tudo. Ele diz que o discurso deveria ser doce algumas vezes e duro em outras, algumas vezes magnificente e em outras vezes modesto,e em outras vezes deveria ser esquecido. Assim, ele finaliza com a seguinte caracterização, na medida em que seu próprio estilo concerne. Estava livre de virtude e da forma de cada um deles (dos grandes antigos).  "Meu discurso é adornado em virtude de todos eles e consequentemente, eu sou aquele que foi feito por muitos. Se alguém quer ler meus trabalhos, porém, verá muitas destas investigações desde a raiz". Psellos martelou, de fato, um estilo que foi seu próprio, com frases que era grandes e cheias de nobreza, paixão e delicadeza, mas não livre do peso dos embelezamentos retóricos. Eu mencionei estas coisas por duas razões. Em primeiro lugar para Mostrar como Psellos se encontra quatro séculos antes da Renascença, mas como ela, tem um reconhecimento especial com relação aos antigos. Em segundo lugar para mostrar que este cuidado tão intenso. E em segundo lugar, de forma a mostrar que seu cuidado pela forma, que é tão intensa, é uma das causas que lhe trouxeram Platão e que chegou a entender o filósofo grego de maneira tão distinta que seus predecessores, como, por exemplo, Fócio.

sábado, 7 de junho de 2014

Platonismo e Aristotelismo em Bizâncio (parte II)

Continuação do post anterior, do livro de Basil Tatakis Christian Philosophy in the Patristic and Byzantine Tradition

1) Os comentadores bizantinos de Aristóteles --> É agora tempo para nós de retornarmos a Bizâncio e inicialmente dizer poucas palavras sobre os comentadores bizantinos de Aristóteles. O mais importante entre os antigos comentadores é João Philoponus, cujo trabalho foi continuado pelos seus estudantes Estevão de Alexandria, David o Armênio e Elias. Eles seguiram a tradição que foi estabelecida pelos filósofos neoplatônicos e os comentadores da escola filosófica de Alexandria, que se aproximou muito do espírito Cristão, deixando de lado os interesses ontológicos e se voltando principalmente para as ciências, em especial às matemáticas. Assim, nós podemos explicar, como veremos, porque Philoponus se converteu ao cristianismo.
Após os discípulos de Philoponus, a tradição de comentadores de Aristóteles em Bizâncio chegou ao fim após três séculos. Estes foram os séculos durante os quais o pensamento bizantino voltou-se quase exclusivamente para questões teológicas. Com Psellos no século XI, uma grande linha de comentadores reemergiu quase próximo a Scholarios, o primeiro patriarca da ocupação turca, que foi também um importante comentador de Aristóteles. Além de Psellos e Scholarios, outros importantes comentadores nesta linha são João Ítalos, Eustratios de Nicéia, Nicéforo Blemmides e Teodoro Metochites. Com seus trabalhos, estes comentadores significativamente avançaram o estudo e entendimento do Estagirita.
Em 1882 a Academia de Berlim começou a publicar todos os trabalhos dos comentadores de Aristóteles, em uma ordenação impressionante de largo volume, os quais estão sendo publicados até agora,o que, no entanto, não esgota todos os comentários a Aristóteles. Mas esta edição constitui um trabalho monumental. Ela esconde em suas páginas um labor de 15 séculos, uma inimaginável riqueza de perspectivas, nuances, pesquisas, problemas, os quais, como dissemos, não olham apenas para a descoberta do correto entendimento de Aristóteles, mas também pela busca do que é certo em si mesmo.
Nós agora passaremos para alguns expoentes representativos da filosofia bizantina e procuraremos neles os elementos que expressam o significado, que Platão e Aristóteles lhes havia dado, assim como o movimento filosófico original que começara com eles.

2) João Philoponus, O Gramático --> Nossa primeira parada para aquele que nos referimos a pouco, a saber, João Philoponus, o Gramático (século VI), um homem sábio, um pagão de Alexandria, um discípulo de Amônio Hermias (o conhecido comentador do Organon de Aristóteles e discípulo de Proclus) que se converteu ao cristianismo.
Philoponus foi um homem com intenso interesse científico e continuou sua investigação e estudo ao longo de sua vida. Muitas de suas visões sobre física e especialmente sua teoria do movimento foram adotados após muitos séculos no Ocidente e causaram grande rebuliço no tempo da Renascença. Assim, alguns de seus trabalhos que se referiam às ciências positivas (geografia, física, etc) foram livros textos em Bizâncio, mas também no Ocidente no século XVIII. Ao mesmo tempo, os Neoplatônicos após Plotino, como Proclus e Jâmblico, aceitaram em suas vidas toda forma de magia e de médiuns. Eles se viam mais como sacerdotes devotos, teólogos, do que como filósofos. Pareceu que esta atmosfera pagã aborreceu Philoponus, convertendo-o ao cristianismo. Isto quer dizer que a Cristandade lhe ofereceu um fundamento mais firme tanto para o pensamento filosófico quanto para o científico. Em outras palavras, isto provavelmente quis significar que as posições metafísicas da Cristandade lhe ofereceram um Universo que lhe respondia mais adequadamente às demandas do pensamento racional. Estas coisas pressupõe, claro, que Philoponus, como Cristão, sentiu-se livre para buscar entender a conexão racional que é para ser encontrada ma esfera inerente do pensamento sensível.
Estas visões, que são de grande interesse para nós, são principalmente encontradas em dois grandes livros que são ao mesmo tempo tanto filosóficos quanto teológicos, Sobre a eternidade do Mundo e sobre A Criação do Mundo. O primeiro constitui uma refutação muito importante das visões de Proclus, que apresentara como argumentos a posição pagã da filosofia. Nós apreciamos neste trabalho o livre movimento da razão que retira seus argumentos da região da ciência e não da teologia. Aqui, ouvimos falando o sábio físico. Com profundidade, porém, vemos que ele é guiado pela fé no relato do Gênesis do Antigo Testamento, ainda que ele deseje que seus argumentos sejam científicos e sejam livremente derivados do que parece ser geralmente aceitável e racional. O segundo trabalho desenvolve a posição cristã acerca da criação do mundo.

3) O entendimento cristão de Philoponos acerca da Criação- Nós nos restringiremos a poucos argumentos característicos de Philoponos. Se o mundo fosse eterno, ele diz, então o infinito seria em ato, estaríamos em condições de dar um número a ele, o que é impossível. Isto significa que a eternidade do mundo é uma tese impossível. Novamente, ele não concorda com Proclus que toda forma de energia, e disso a criação, pode ser reconhecida como um movimento. A criação ocorre apenas pela vontade de Deus, a qual não precisa nem de tempo ou dimensão para ser expressa. Com a criação, vista neste sentido, apenas a operação espiritual, diz Philoponus, lhe é necessária, já que a última é sem tempo e não pode ser entendida como um movimento. Esta é uma distinção muito significante, que nos remove da dominação das visões naturalistas da cosmologia. A criação, obviamente, ocorre no tempo e assim o próprio tempo tem um começo.
Isto, porém, não significa que o que quer que aconteça no tempo tem seu ser imerso em um eterno devir. O triângulo toma seu início em uma certa alma - diremos a alma de Platão- mas ele não é alterado por conta disso. Ele permanece um triângulo eterno e seus três ângulos terão uma soma eterna de dois ângulos retos. Logo, não é certo que o que quer que comece no tempo é por esta razão sujeito a uma transformação incessante e mudança. Novamente, não é certo que o que quer que comece necessite algum tipo de matéria de modo a vir a ser, ou o que é necessário vir a ser de um ser pre-existente, de acordo com um princípio aristotélico de que homem gera homem, pois é possível que algo seja criado do nada. De modo similar, não é possível para a matéria existir sem um eidos, sendo sem uma qualidade, como defende a metafísica aristotélica. Em reconhecimento da alma, sua essência não é um princípio de movimento, como alega Aristóteles. O sol ilumina por sua própria natureza à medida em que manifesta, e ele projeta calor ainda que não haja vontade para isto. Nós devemos usar pensamentos similares no que concerne à alma racional, já que o que quer que aconteça, ela causa, por sua própria natureza, vida e movimento sem que necessite vontade.
Todas estas posições opostas a Philoponus são posições aristotélicas cruciais. Suas refutações alteram uma mui consistente aplicação do princípio metodológico aristotélico, que busca a cada substrato e ser sua qualidade própria. Assim Philoponus consegue escapar das garras da psicofísica de Aristóteles, que muitas vezes sujeita os fenômenos físicos e a própria alma às categorias naturais que os definem como "uma primeira enteléquia de um corpo natural que tem a possibilidade de vida" e permanece crente ao dualismo Cristão, que se expressou pela primeira vez em Platão. Retornando, em seu segundo trabalho, com relação à alma, Philoponus defende que sua substância incorpórea é introduzida no corpo humano de fora, no momento em que o corpo é formado. Deus, ele diz, abençoou o homem assim que o fez. A entrada da alma no corpo, ele conclui, não é uma privação, como Platão pensou. Aqui vemos a Cristandade falando, já que ele vê com olhos otimistas o destino do homem. O homem, ele diz, quando ganha a consciência de sua espiritualidade, torna-se ao mesmo tempo capaz de elevar a si mesmo a Deus com seu espírito e com sua alma purificada.

4) Os pensamentos de Philoponus e Aristóteles -- Ainda que muito frequentemente em suas investigações científicas ele nos lembre Aristóteles, no sentido em que ele investiga os problemas e na metodologia que ele emprega para fazer isso, Philoponus afasta-se novamente de Aristóteles em pontos cruciais. Aristóteles defende que é possível para a mente compreender as causas, isto é, os primeiros princípios dos entes. Isto acontece quando do efeito somos elevados às causas e continuamos este processo até que cheguemos à causa primeira. Com este processo, nós também chegamos a conhecer e explicar os entes, de acordo com Aristóteles, porque ele aceita contrariamente à moderna teoria evolucionista, que o maior explica o inferior. Nesta questão crucial, Philoponus discorda radicalmente de Aristóteles. Não há caminho, ele diz, que conduza do efeito para a causa ou do fenômeno para aquilo que é. Não é dado ao homem determinar as causas e consequentemente nós conhecemos muito pouco sobre elas. Nós apenas acreditamos que as coisas foram bem ordenadas e bem criadas por Deus.
Em outras palavras, Philoponus não aceita que o conhecimento humano exaure o objeto ou que seja capaz de sozinho nos conduzir aos primeiros princípios, isto é a Deus, como defende a filosofia grega. O conhecimento humano permanece, para Philoponus, na superfície dos entes; ele não move da aparência à realidade. Este processo da aparência à realidade é possível apenas com certos dogmas que nos são dados por revelação. Quando nosso espírito conscientemente adota estes dogmas, então ele comunica em um sentido com algo que está além do que é meramente sensível.
De forma breve expusemos, pelo dito acima, a postura filosófica de Philoponus. Ele é um aristotélico ou um platônico? A resposta correta é simplesmente dizer: ele é um cristão. geralmente, porém, os estudiosos reconhecem Philoponus como um aristotélico. Alguns chegaram ao ponto de afirmar que com sua autoridade, Philoponus contribuiu para a exclusiva adoção de Aristóteles como mestre do pensamento Bizantino. Em outras palavras, ele teria feito pelo Leste o que Tomás de Aquino fez pelo Oeste. Mas veremos se isto é de fato o caso. Em sua refutação de Proclus, mostramos que Philoponus sabe igualmente bem tanto Platão quanto Aristóteles. Ele repetidamente mostra que Proclus equivocou-se ou, intencionalmente, distorceu ideias que às vezes vinham de Platão e outas vezes de Aristóteles. Mas algo que revela a boa compreensão que ele teve do pensamento destes dois gigantes filosóficos está no fato dele insistir contra os Neoplatônicos nas diferenças que os separam. Se ele frequentemente defendeu posições aristotélicas, foi mais comum ainda a rejeição de outras posturas aristotélicas. Mas ele muitas vezes também refutou Platão. Nas ideias platônicas, ele vê os pensamentos criativos de Deus, os arquétipos das coisas sensíveis, não as coisas que são realmente reais, que são separadas do Deus criador, como Platão pensa. A conclusão é que Philoponus frequentemente refuta tanto Platão e Aristóteles, mas também ele frequentemente se refere a ambos quando ele crê que possam estar certos em alguma coisa. "Você deve ver as coisas em si mesmas", ele diz a Proclus, "e não apenas as hipóteses de Platão". Esta é uma afirmação de peso que mostra que ele quer ser independente dos filósofos.
Como um sábio investigador, ou como um espírito que deseja sistematizar, ele adota a lógica aristotélica, o sentido de analisar problemas e o método de investigação que é seguido por Aristóteles; ele frequentemente aceita mesmo a física de Aristóteles. Este é seu aristotelismo. Mas contanto que seu próprio pensamento se mova para o alto e o force a ir além das coisas sensíveis e, na medida em que ele faça isso, ele se anima por alguma outra inspiração. Para poder expressar filosoficamente a verdade que é derivada da revelação, i. e. as verdades que são concernentes a Deus, à alma, á criação do mundo, ele encontra mais elementos em Platão e nos Neoplatônicos. Muitas vezes, ele diz que Platão imita Moisés, mas ele nunca diz isso de Aristóteles.


5) O aristotelismo cristão dos bizantinos- É óbvio, então, que o aristotelismo de Philoponus é restrito apenas à forma, ao vestuário do pensamento, ou a seu rearranjo para as verdades científicas e não para a metafísica da substância. Este é, de fato, o aristotelismo de muitos bizantinos. É com tais reservas, que poderemos ver a originalidade e a independência do pensamento dos bizantinos e que  podemos aceitar a afirmação de que Philoponus seja o fundador do cristianismo aristotélico.
Quase ao mesmo tempo, outro grande espírito, sobre o qual nós falamos anteriormente, Leôncios Bizantios (morto em 543), apresenta mais claramente os elementos do aristotelismo cristão. O aristotelismo lógico, as noções as quais ele adapta da metafísica cristã, permite-o analisar em detalhes e com clareza noções teológicas. Este trabalho o coloca no topo da filosofia escolástica bizantina, a qual tenta por argumentos lógicos e um procedimento científico expressar verdades cristãs.
O apogeu do Escolasticismo Bizantino, no sentido que nós temos atribuído a ele, é alcançado no oitavo século com João Damasceno (d. 749), mais do que 3 séculos antes de um movimento análogo no Ocidente. Em todo ele, encontramos a posição que Philoponus abraçou com relação a Platão e Aristóteles.
Nesta matéria particular, há uma diferença básica entre o Leste Grego e o Oeste. No primeiro, os elementos aristotélicos vêm ser adicionados à tradição filosófica que é rica no platonismo. Isto está ausente em larga medida no último. Esta é a razão de porquê no Ocidente nós virmos uma completa dominação de Aristóteles, que expressa uma posição puramente racionalista do espírito. A posição dos bizantinos, ao contrário, tem a forma que encontramos em profundidade da Ortodoxia e constitui uma síntese de racionalismo e misticismo ou contemplação, onde o racionalismo é usado por Aristóteles e o misticismo ou contemplação por Platão. Este é, de fato, o novo significado que Bizâncio dá a estes dois grandes filósofos, um significado que naturalmente não corresponde à realidade histórica. Esta é a razão de porquê nem Aristóteles ser tipicamente racionalista nem Platão ser um típico representante do misticismo.
Nós agora nos moveremos a outros que completarão nosso assunto com outros elementos interessantes ou darão uma nova forma.

6) Fócio e seu programa educacional - Durante o nono século a vida espiritual de Bizâncio é dominada pela grande personalidade de Fócio (820-891). Ele é o sábio por excelência. Sua agudeza é admirável, tanto quanto sua independência e certeza de seus julgamentos, a qual se refere a uma variedade surpreendente de assuntos e ramos científicos. Seus julgamentos, sendo sempre o fruto de cuidadosos estudos, nos concede o que é a essência das questões em poucas palavras. Para estas virtudes pessoais, Fócio é o único bizantino que pode ser comparado a Aristóteles. Ele é, como este último, um verdadeiro homem de saber universal. Nascido para ser professor, ele se dedicou com todo o seu coração em conduzir a juventude sedenta de conhecimento. Sua casa foi por muito tempo, mesmo quando ele era um Patriarca, um lugar real de estudo e leitura, onde a juventude se reunia e aprendia. Seu famoso trabalho, Myriobiblos, ou Biblioteca, que contém uma análise e afirmação de 281 trabalhos de sabedoria eclesial e secular, que eram lidos, principalmente, durante estas reuniões, testemunham o esforço educacional de Fócio. Muitos dos trabalhos que são analisados aqui não mais sobreviveram.
A posição espiritual de Fócio é caracterizada pela sua forte relação com a Antiguidade. Pela primeira vez desde o século VI, uma nova reviravolta é dada com Fócio para as questões Gregas, uma nova tentativa de estabelecer uma ligação mais estreita entre a sabedoria secular e a teologia. Com Fócio chegamos a algo a mais, para um novo elemento da vida espiritual de Bizâncio. Fócio exibe um interesse vívido pela filosofia em si mesma. Ele não a vê apenas como serva da teologia. Este interesse o conduziu a incluir nos Myriobiblos ardentes palavras em relação a Enesidemo, uma súmula das quais ele nos oferece aquelas que são a única fonte para este filósofo cético. Assumindo certas reservas, diz Fócio, os trabalhos de Enesidemo são úteis àqueles que se aplicam aos estudos dialéticos.

7) Fócio e o conflito entre Nominalismo e Realismo- A despeito de sua independência de espírito, Fócio, obviamente, não cessa de ser representativo desta época. Como transparece dos seus trabalhos filosóficos que sobreviveram (muitos deles foram perdidos), o que parece ser seu interesse primário parece ser a dialética e a lógica, que, como ele diz, são sempre fundadas nos espaços da teologia.Nós devemos encerrar em um ponto, que parece ser de grande interesse para a história da filosofia. É geralmente aceite que realismo e nominalismo nasceram e se desenvolveram na filosofia ocidental escolástica. Estes temas, de fato, dividiram os escolásticos em dois campos opostos e os conduziram a vívidas justaposições de opiniões e movimentos. De acordo com o realismo, como é bem sabido, as mais altas espécies existem independentemente dos seres particulares com os quais parecem. Nominalismo estabelece contra esta visão, a ideia de que elas seriam meramente símbolos, ou palavras. A filosofia de Fócio prova ser errônea a visão de que esta discussão nasceu no Ocidente, e que ele foi um problema recorrente e acalorado já naquela época. Falando sobre as espécies (genos) e os tipos (eidos), Fócio condena os seguidores das duas posições contrastantes, indicando suas inadequações e projetando uma solução que lhe é inteiramente própria. Espécies e tipos são corpóreas, mas não são corpos. Elas denotam a essência dos sujeitos, mas não causam sua constituição. Elas são nomes, noções apropriadas para denotar a existência específica dos sujeitos e não falta nada que não seja dados aos seres, uma vez que possuam sua essência, e que de tais coisas necessitem.
Por esta razão, Fócio rejeita as ideias platônicas. A preexistência das ideias arquetípicas especifica um criador desprovido de poder, um mero técnico. Então, não há razão real para atribuir a estas ideias arquetípicas que não são cambiantes e mutáveis na mente de Deus com seres que estão em um permanente estado de vir a ser. Fócio, ao rejeitar este duplo realismo, de Platão e dos realistas, é capaz de, por um lado, preservar intacta a onipotência de Deus e a distância entre o Criador e a criatura e, por outro lado, fazer uma síntese entre o nominalismo e o realismo. Espécies e tipos existem, eles são corpóreos, mas não são corpos.

8) A preferência de Fócio por Aristóteles. Parece, do que dissemos, que Fócio tinha preferência por Aristóteles. Ele diz que sua filosofia é mais divina, pois está baseada na necessidade de ser racional e no esforço em ser metódico. Este julgamento nos dá Fócio por inteiro. A um espírito racional, mesmo que racionalista, é natural que deva se voltar a Aristóteles, o professor e informante da técnica lógica. E é este o caso geralmente em Bizâncio. Aqueles que possuem uma tendência racionalista retornarão a Aristóteles. Isto ocorre, naturalmente, não porque o pensamento de Platão não siga um procedimento logicamente necessário, mas porque Platão é mal interpretado. Eles são enganados pelas formas literárias de suas obras, especialmente os mitos contidos nelas. Estes mitos os impedem de ver o pensamento platônico em sua profundidade. Assim Fócio, uma mente prática, não faz concessões à linguagem poética de Platão, o qual ele vê primariamente como um filósofo de mitos, do Timeu, o Platão dos Neoplatônicos. Este é o Platão que nós vemos em toda a extensão da Idade Média. Mesmo na Idade Moderna foi consideravelmente tardio um conhecimento objetivamente satisfatório de Platão.

9) O retorno de Platão no século XI. A filosofia será vista com muito maior independência do que aquela de Fócio no século XI por Psellos e seu discípulo João Ítalos, mas não através de Aristóteles, mas através de Platão. Este é o significado que Platão começará a adquirir em Bizâncio. Ele tornou-se o principal representante da filosofia. Pouco a pouco, um desejo pelo platonismo foi despontando de forma autônoma e independente em seu pensamento.  No final com Platão, o pensador platônico parecerá ser o maior inimigo da cristandade. Por outro lado, o pensamento aristotélico nunca adquirirá tal significado. O pensamento aristotélico sempre parecerá aquele que herda argumentos racionais de Aristóteles para melhor estabelecimento da cristandade. Este é o estranho desenvolvimento que observamos. Platão, a quem o filósofo anticristão Nietzsche chama de subcristão é visto então depois como um inimigo irreconciliável da cristandade e o principal representante do espírito pagão grego, exatamente da mesma maneira que foram vistos Plutarco e Plotino. Aristóteles também é visto como alheio à cristandade. Aristóteles fornece as armas da lógica e oferece as interpretações dos fenômenos naturais, enquanto Platão fornece as coisas que jazem para além dos sentidos com muitas soluções muito diferentes daquelas dadas pelos cristãos e, com as perspectivas que ele inaugura, conduz a mente a um livre movimento. Em qualquer caso, é fato que durante os últimos anos de Bizâncio, o apelo a Platão é feito apenas por aqueles que desejam quebrar a síntese elaborada entre fé e conhecimento realizada pelos primeiros pais.


segunda-feira, 7 de abril de 2014

Platonismo e Aristotelismo em Bizâncio (parte I)

O texto abaixo dará sequência a um texto de quatro partes, acerca da influência do Platonismo e do Aristotelismo em Bizâncio. O texto abaixo é uma tradução do capítulo XIV do magistral livro Christian Philosophy in the Patristic and Byzantine Tradition de Basil Tatakis, cuja tradução foi feita do grego para o inglês por George Dion, que também editou o livro em 2007 (págs 1 a 14). Estou aqui oferecendo uma tradução do texto em inglês, ou seja, uma tradução de uma tradução e espero que isto não se ofereça como um malefício para os leitores em língua portuguesa e sim como um meio de divulgação de ideias, propósito implícito a este mundo cibernético.
Conhecer a influência do aristotelismo e do platonismo no cristianismo bizantino nos permitirá compreender como se deu este intercâmbio entre a Filosofia Grega e o pensamento Cristão e de que modo também o cristianismo não pode não ser compreendido sem termos em conta esse encontro entre Atenas, Roma e Jerusalém.

Platonismo e Aristotelismo em Bizâncio (parte I)

1) Introdução.
A influência da filosofia Platônica e Aristotélica na formação do cristianismo, e especialmente no Pensamento Bizantino, foi muito considerável. De fato, foi tão grande que os historiadores da filosofia viram completamente o todo do período Bizantino e ainda hoje o vêem, simplesmente como um intercâmbio de elementos Aristotélicos e Platônicos desprovidos de qualquer interesse especial. Eu acredito que a  investigação que temos até agora em certa medida demonstrou que o elemento essencial no pensamento cristão e bizantino não é esta ou aquela influência, ou posição neles contida, mas sua nova orientação, sua nova metafísica. Nós observamos isto em capítulos prévios, onde nós discutimos "o problema da predestinação e a auto-determinação". Neste novo capítulo, vamos investigar um pouco mais de perto o significado que a filosofia de Platão e Aristóteles tinha para os Bizantinos, incluindo o movimento filosófico que foi causado por eles e a originalidade que este movimento apresenta.
Antes de tudo, nós necessitamos aclarar o contexto histórico. Platão e Aristóteles sempre foram familiares para os cristãos do Oriente Grego, especialmente o primeiro, e eles foram se tornando cada vez mais familiares com o passar do tempo. Isso durou por todo o período Bizantino. Sua entrada no pensamento bizantino ocorreu em dois sentidos, indiretamente e diretamente. Ele ocorreu indiretamente através do Neoplatonismo, e diretamente a partir de muitos textos de filósofos, os quais, ao que parece, os bizantinos nunca deixaram de estudar.

2) O aristotelismo e platonismo do neoplatonismo
Vamos dar uma parada em primeiro lugar no aristotelismo e platonismo do Neoplatonismo. A principal posição de Plotino foi que Platão constituiu a principal raiz e tronco da filosofia. Cremos que uma interpretação de Platão foi suficiente para dar uma resposta a todas as questões e problemas que surgiram na mente. Os pensamentos de Plotino são tecidos em torno desta posição, quando ele tenta responder a perguntas que lhe foram colocadas pelo seu público-alvo e seus discípulos. Ele se volta aos textos platônicos tão frequentemente que sua filosofia aparece em última análise ser um comentário destes textos. Plotino, porém, é  um comentador tão genial que ele cria com sua interpretação uma nova escola filosófica. Para persuadir a todos que Platão foi o filósofo e o tronco da verdadeira filosofia, ele defendeu a visão de que não houve fosso intransponível entre Platão e Aristóteles. Estes dois filósofos complementaram um ao outro, e isto se aplicou especialmente ao último, que foi um complemento necessário ao primeiro.
Esta posição permitiu Plotino mover-se com facilidade entre os dois grandes filósofos, voltar-se para a visão de ambos e tentar construir uma síntese harmônica de suas filosofias, deixando de lado suas diferenças essenciais. O fato, é claro, é que há diferenças em essência e no método entre estes dois filósofos, mesmo que ambos sejam representantes do idealismo.

3) Neoplatonismo e Cristandade- Como sabemos, o neoplatonismo manteve-se como um firme inimigo da Cristandade. Seu principal objetivo foi satisfazer as inquietudes de seu tempo, voltando-se, porém, para a mais genuína artéria Grega, como acreditou-se, que era para ser encontrada em Platão. Foi uma inquietude análoga, ou a mesma, que os pensadores cristãos buscaram satisfazer. De fato, como vimos, quando falamos sobre Justino e Agostinho, o cristianismo pensou ter trado dela de uma maneira muito eficaz. Isto baseou-se no fato de que a Cristandade não era uma mera teoria, um problema teorético, mas uma fé e ato por meio dos quais poder-se-ia alcançar uma verdadeira e completa conversão de alma.
O fato de que tanto o Neoplatonismo quanto a Cristandade terem se voltado para uma inquietude análoga cria uma afinidade entre eles, a despeito de sua hostilidade e antítese. Embora os seus olhos permanecessem sempre atentos com relação à raiz pagã e anti-Cristã do Neoplatonismo, os Padres Cristãos permitiram que o idealismo Neoplatônico imbuísse seu pensamento. O movimento da alma das coisas sensíveis da matéria para o mundo inteligente, tanto quanto seu retorno da mente e o UNO, foi algo que os moveu e os encantou.

4) O neoplatonista Juliano, o Apóstata, e a Cristandade- Ao mesmo tempo, a Cristandade exerceu uma influência nos neoplatonistas. O grande oponente dos cristãos, o neoplatonista Juliano o apóstata, reconheceu que a Cristandade beneficiou sua atividade filantrópica: "O ateísmo (que é a Cristandade)", ele diz, "cresceu por causa de sua filantropia com relação aos estrangeiros e pelo cuidado que tinham no sepultamento dos mortos" (Juliano Apóstata, Epistles, 847f. in J. Bidez (ed), Le empereur Julien: Oeuvres completes, vol. 1.2, 2nd. ed., Les Belles Lettres, Paris 1960). Por conseguinte, ele recomendava aos pagãos que agissem de um modo similar. Ele escreveu ao sumo sacerdote pagão da Galácia: "Deve-se estabelecer hotéis em toda cidade de modo que os estrangeiros possam gozar de nossa filantropia, não apenas aqueles que pertencem a nós, mas também aqueles outros que podem estar em necessidade de dinheiro". (Ibid. 84.23). "Acima de tudo", ele acrescenta, "você deve cuidar da promoção da filantropia, pois ela incorre em muitos bens e acima de tudo garante o favor dos deuses." (Ibid. 89b24f). Juliano não entendeu que a filantropia dos Cristãos era consequência necessária de sua teologia a qual deu nascimento à formação de um novo homem. Seu texto, porém, é um eloquente testemunho da radiação da Cristandade mesmo entre círculos pagãos.
Lembremo-nos novamente que o pensamento cristão e o pensamento neoplatônico cresceram juntos e foram moldados juntos no mesmo grande centro e caldeirão cultural de Alexandria. Foi lá que Amônio de Sacas, o primeiro neoplatônico, viveu e ensinou e também lá que Plotino tornou-se seu pupilo. Ao mesmo tempo, nós temos em Alexandria a grande atividade da escola catequética com Clemente e Orígenes. O último, especialmente, foi ensinado por certo Amônio que, de acordo com a maioria dos historiadores, foi idêntico a Amônio de Sacas. Todos estes fatos junto ao aparecimento e aceitação das obras de Pseudo Dionísio o Aeropagita, com um notável selo neoplatônico, indicam o papel do neoplatonismo na formação do pensamento cristão. O Neoplatonismo traz consigo, como vimos, tanto Platão quanto Aristóteles. Isso contribuiu para a entrada indireta desses dois filósofos ao cristianismo.

5) Platonismo, aristotelismo e cristandade- Examinaremos agora a entrada direta do Platonismo e do Aristotelismo no pensamento cristão. Quase não há nenhuma trabalho bizantino com conteúdo filosófico ou teológico em que não possamos encontrar não apenas ecos de Platão e Aristóteles, mas também algum tipo de adoção ou criticismo, ou mesmo rejeição de suas posições filosóficas. Sua influência não está restrita apenas ao conteúdo mas inclui também a forma. Os poucos estratos de João Damasceno que nós citamos no capítulo anterior mostram, como c remos, que ele seguiu a articulação da razão aristotélica. Ele quer ser denso e apotegmático, mas também de uma maneira analítica e sistemática. A adoção da forma aristotélica de argumentação e articulação de pensamento é mais clara ainda nos aristotélicos do século XII Miguel de Éfeso, Eustrátio de Nicea, Nicolas de  Methone e outros.

6) Diálogo Platônico Cristão - Ao mesmo tempo, porém, a atração exercida pelos diálogos platônicos foi igualmente grande. Durante o quinto e sexto séculos, nós tivemos muitos diálogos interessantes, baseados no Protótipo dos platônicos, escritos pelos cristãos em defesa das posições cristãs. O mais importante entre eles é o diálogo de Aeneas o de Gaza (sexto século), trazendo o título Teofrastus, ou acerca da imortalidade da alma e da ressurreição do corpo, e o diálogo de seu amigo Zacarias de Gaza, bispo de Mitilene, trazendo o título, Amonius, ou acerca da criação do mundo. Nós vamos nos concentrar por um curto momento na primeira obra, onde sentimos uma presença ininterrupta de Platão. Ela não está destituída de qualquer forma platônica, ou ethos ou fluxo natural de análise.
Há três personagens principais neste diálogo: o egípcio, Teofrasto (que fala sobre Deus) e Euxitheos (aquele que ora a Deus). Teofrasto é o sábio que sabe todas as coisas: "Por anos até agora", ele diz com orgulho, "ninguém me perguntou qualquer coisa que pudesse introduzir qualquer questão nova para mim" [Esta é uma frase que vem do Górgias de Platão]. Assim, o Górgias Platônico ou Euxitheos são descritos imediatamente diante de nossos olhos. Teofrasto imediatamente encontra ocasião para revelar sua sabedoria. Mas vemos que esta sabedoria é inteiramente derivada dos livros, ou, em outras palavras, é livresca. "Veja", ele diz e diz novamente, "o que os velhos mestres me ensinaram!". Esta afirmação está cheia de ironia para com os filósofos contemporâneos pagãos de Aeneas e sábios que, em sua própria opinião, simplesmente se restringem a repetir sempre e mais outras vezes todas as posições dos antigos e são incapazes de ver o que lhes acontece ao redor. Há, de fato, alguma coisa nova que Teofrasto declara como algo desconhecido para ele, que afirma conhecer de tudo, posto que diante de seus olhos, há a verdade cristã. Ele não necessita nada além do que abrir os olhos e vê-la. E isto é de fato o que ocorre no final do diálogo.
Por outro lado, Euxitheos, que representa o autor do diálogo, é suposto ter vindo da terra da Síria, em outras palavras, do lugar da nova luz. Ele quer ir a Atenas para estudar aos pés dos filósofos o problema da sobrevivência da alma.  Em Alexandria, pois esta é a cena do Diálogo, ele se depara com o filósofo ateniense Teofrasto que julga isso ser um sinal de grande fortuna, de oportunidade de iluminação. Euxitheos aparece com a ironia Socrática como uma pessoa ignorante que deseja ser ensinada. De fato, porém, ele é alguém que deseja ensinar aos demais.
Através destes meios simples e sabiamente estudados, Aeneas avança com muitas ideias. Não há nada redundante neste diálogo, nem os nomes, nem o lugar. É na terra do Egito, em Alexandria, onde a batalha acontece entre a sabedoria de alguém que se apresenta como um grande nome (Teofrasto) e a fé de Euxitheos que está sujeita a Deus - o nome Euxitheos aponta para a oração, ou ainda, para a oração incessante que é uma das poucas características que aparecem na vida dos Cristãos.
Mais tarde, nós também encontraremos diálogos filosóficos em Bizâncio, desde o século XI em diante, durante o novo período de revivência dos estudos gregos, especialmente em Gregoras e outros. Durante este período, os autores gregos que são sempre familiares a Bizâncio tornam-se mais e mais populares e exercem uma influência de alto grau na vida espiritual dos bizantinos. Um exemplo característico do amor pelos autores clássicos é fornecido no século XI por João Mauropous, que mais tarde tornou-se bispo de Euchaita, que mais tarde instituiu a festa dos Três Hierarcas e das Letras Gregas. Em uma brilhante hinografia, além de outras habilidades, ele implora a Cristo em um de seus epigramas que tenha piedade de Platão e Plutarco, porque ambos com seu pensamento e alma estavam muito restritos às leis que pregaram.
A influência, porém, do raciocínio platônico é apenas aparente em trabalhos que não estão na forma dialógica, como nos tratados filosóficos de Demétrios Kydonis (século XIV). Quando se lê seu tratado sobre o dictum "o temor à morte é irracional" é provável ser ludibriado, pensando ler páginas platônicas. Isto ocorre não apenas por certa afinidade de pensamento.
O que temos falado até agora são elementos externos e descritivos. Eles mostram os sentidos que Platão e Aristóteles seguiram até chegarem a Bizâncio (se diretamente ou indiretamente) e o prestígio que eles sempre gozaram. Qual atitude, porém, os bizantinos adotaram diante deles, o que tais filósofos representaram para eles, e qual significado convinha a eles, ou novamente qual movimento filosófico foi causado por eles? Estes são os tópicos que queremos investigar, nos voltando a alguns dos mais importantes amigos bizantinos e admiradores dos dois grandes filósofos da antiguidade.

7) O estudo de Aristóteles - É necessário, porém, primeiro fornecer alguns dados que reconheçam o processo e a forma que o texto aristotélico foi tomado. Isto é fundamental para o melhor entendimento não apenas da filosofia bizantina, mas também da árabe e da ocidental.
Já no ano 50 A. C , isto é, no tempo em que o filósofo peripatético Andrônico de Rodes fez a primeira edição dos trabalhos de Aristóteles, os aristotélicos - a despeito de se voltarem para a investigação e o desenvolvimento das ciências da Natureza, seguindo o método de seu mestre, como já tinham feito outros aristotélicos (Teofrasto, Strabo) - começaram a se ocupar eles mesmos primariamente com a investigação do correto significado das palavras de Aristóteles. O mestre ergue-se diante deles como a única autoridade. Daquele tempo em diante, uma longa e sem fim linha de comentadores começa a constituir um único fenômeno na história da filosofia por conta de sua extensão. Tem-se também comentários a Platão, mas não com a mesma extensão. O renascimento do aristotelismo não se tornou ocasião para uma nova filosofia, como aconteceu com o caso do platonismo através de Plotino, mas deu surgimento a um estudo sistemático da obra aristotélica, unido proximamente ao seu texto.
Nós podemos então corretamente perguntar, por que existiram tantos comentadores de Aristóteles? Ora, a resposta é relativamente fácil. Foram produzidos comentários a textos que deixaram de ser imediatamente acessíveis, em outras palavras, acessíveis sem comentários, e que obviamente não deixaram de apresentar grande interesse. Novamente, produziu-se comentários a textos que não apresentavam sempre a clareza desejável. Este é frequentemente o caso de Aristóteles, que não fala com muita exatidão. Este é, de fato, o que um comentarista bizantino muito importante, o perspicaz Theodore Metochites (século 14), tem contra Aristóteles com veemência e nitidez sem, contudo, deixar de admirá-lo.
Não há outra razão particular que torne a produção de comentadores nos trabalhos de Aristóteles tão necessária. Os trabalhos de Platão são, em última análise, palavras de admoestação à filosofia. Eles são meios de conduzir a alma a criar uma atmosfera filosófica, que se possa sentir a qualquer momento, ou eles convidam à sua participação ativa, ou chamam a abrir os horizontes que constantemente aparecem diante de nós. São trabalhos endereçados a treinar os olhos ou a amadurecer a mente. Eles pressupõe certa preparação sem a qual não são produtivos. Em outras palavras, os trabalhos de Platão não são destinados a fornecer elementos filosóficos ou base de conteúdo ou método. A dialética platônica é muito mais do que um método, porque ela representa uma operação intelectual elevada de acordo com a qual a mente, a razão, visualiza suas questões de modo a remover antíteses, ou a reconciliar antinomias.
Pelo contrário, os trabalhos de Aristóteles, com sua sistemática, seu procedimento didático e metódico, são muito mais apropriados enquanto livros texto, preciosos pela introdução e ensinamento de filosofia. Assim, para os primeiros séculos depois de Cristo, eles se tornaram textos necessários, nas escolas filosóficas, em estilo de livros texto, par excellence. Esta é a razão da necessidade da produção de comentadores da obra aristotélica ter se tornado tão grande.

8) Os comentários aos trabalhos de Aristóteles e seu valor - Outra questão para as quais nós devemos nos voltar é se este laborioso trabalho dos comentadores apresenta qualquer interesse especial para a História da Filosofia. Nossa resposta, sem qualquer hesitação, seria afirmativa. Em primeiro lugar, os trabalhos deles estabeleceram certas maneiras de apresentar problemas, ou de classificar ideias que são ainda difundidas em toda a Filosofia Contemporânea. Não se trata aqui simplesmente de comentários relacionando dados linguísticos, mas a uma interpretação filosófica de um texto dado. Este tipo de trabalho sempre traz em seu interior um elemento de criatividade. O comentador que tenta por uma série de argumentos compreender o correto significado do texto chega frequentemente, em reconhecimento ao mesmo conteúdo, à conclusões idênticas a de seus predecessores. Isto acontece porque interpretação não é uma tarefa matemática, mas um procedimento que exige a participação do intérprete, ainda que se possa querer objetiva. Por esta razão, os comentários sobre Aristóteles apresentam um duplo interesse para nós hoje. Antes de tudo, eles nos ajudam em muitas ocasiões entender o texto, e em seguida eles nos apresentam um novo Aristóteles, alguém que é fruto de seu próprio construto e que em muitos e importantes pontos é diferente do Aristóteles real, já que ele representa o Aristóteles de suas próprias filosofias.
Certos fatos históricos nos mostrarão em melhor sentido o que está sendo dito. Em primeiro lugar, o ensinamento universitário dos textos aristotélicos resultou na imposição das perspectivas do estagirita acerca do método, na medida em que este é o contorno de sua produção racional, seja qual for o tipo de investigação, se científica, filosófica ou teológica. De fato, na era bizantina, esta metodologia, que passou pelo nome de dialética, chegou a ser idêntica à filosofia. Tal visão tem sua própria profundidade. Isto mostra que os bizantinos não estavam procurando descobrir a essência das coisas na base de um ensinamento filosófico (esta essência foi dada a eles pelos ensinamentos cristãos), mas simplesmente desejavam métodos ou meios técnicos de modo a conseguir formular sua própria essência. É a filosofia vista deste ângulo que se torna serva da Teologia.
Há outro fato histórico que é igualmente importante. Os comentários mais antigos que possuímos são aqueles de Alexandre de Afrodísia [(final do século II D. C) --> W. D. Ross, Aristotle's Metaphysics, vols. 1-2, Clarendon Press, Oxford, 1970]. Eles relatam a Metafísica de Aristóteles e principalmente outras produções que têm a ver com lógica. Um dos problemas mais difíceis da interpretação de Aristóteles foi como ele entendeu as noções de 'mente' e 'percepção'. A resposta que Alexandre de Afrodísia dá mostra muito claramente como, conforme dito previamente, interpretação é também uma nova criação. Há quatro operações da mente que são distinguidas por Aristóteles por seu intérprete. Três delas correspondem a certas faculdades da alma, mas a quarta delas era pura atividade, a percepção da percepção (νοησις  νοήσεως), isto é, o Deus de Aristóteles. Alexandre, deste modo, chega à conclusão que é Deus quem coloca em movimento nossa atividade de percepção. Conhecimento não é "uma visão em Deus" (όρασις  εν  τω  θεώ), uma edificação da mente para Deus a fim de se ver as coisas que existem em Deus (a visão platônica ou neoplatônica), mas uma visão através de Deus (δια  τού  θεου). Aristóteles naturalmente não diz tais coisas atribuídas ao seu intérprete, que deste modo cria um novo Aristóteles capaz de satisfazer a ansiedade particular da época de Alexandre. Durante este mesmo período, os neoplatônicos dão a Platão um novo caráter, primordialmente teológico. Alexandre de Afrodísia faz exatamente a mesma coisa com Aristóteles. Ele estuda a natureza do conhecimento intelectual e de seu objeto, e o traz à teologia, ao invés de fazer como os comentadores mais antigos, para a ciência. Em linhas gerais foi esta a guinada do pensamento para Deus naquele tempo.

9) O desenvolvimento histórico dos comentadores de Aristóteles --> Faremos agora um breve relato da história dos estudos aristotélicos. tentaremos, de fato, dar uma diagrama geral desta história da Filosofia no tempo da Renascença. Outro comentador importante de Aristóteles, além de Afrodisias, foi, por outro lado, Porfírio, discípulo de Plotino. Seu livro Introdução ao Estudo das Categorias (είσαγωγή) , manteve-se como um importante texto tanto para o Ocidente quanto para o Oriente. A dialética dos Bizantinos derivou principalmente deste trabalho. Tivemos tanto Themistios e finalmente Simplicius entre seus comentadores principais. Estes três comentadores foram todos neoplatônicos e, inclusive, nos ofereceram um Aristóteles colorido com tonalidades neoplatônicas.
Do século quinto em diante, os textos de Aristóteles e seus comentários começaram a ser traduzidos para a língua Síria. A Síria tinha naquele tempo centros espirituais significativos como a Escola de Edessa e alguns mosteiros famosos. Mais tarde, os mesmos textos foram traduzidos para a língua árabe. No início do nono século um califa erudito de Bagdá, como Mamum e Harun al Rashid, estabeleceram em suas capitais um especial serviço de tradução. Assim, lá pelo início do século nono, os árabes tinham a sua própria linguagem de Aristóteles além de sua Política e de todos os seus comentários, que nós mencionamos, bem como outros mais recentes de Philoponos.
Um árabe podia também ter em sua biblioteca, ao mesmo tempo o Timeu  de Platão, a República e o Sofista e da medicina Grega os trabalhos de Galeno e dos astrônomos gregos o Al Magesta , o grande trabalho de Ptolomeu (a composição astronômica) e alguns outros trabalhos. Aparte isso, há também alguns textos bizantinos muito importantes como os trabalhos de Philoponos e de João Damasceno.
Estas traduções constituem um evento histórico muito importante. Eles claramente mostram para nós os primeiros materiais em que uma civilização inteira foi fundada e formada, a saber a civilização árabe, incluindo sua ciência e filosofia e mesmo suas artes. Os árabes exibiram, ao mesmo tempo, uma grande sede de aprendizagem. Sua sede foi saciada com os autores Gregos e Bizantinos. Mencionarei aqui uma anedota muito eloquente, ainda que ela não seja diretamente relevante para nosso assunto específico.

10) Os árabes e Bizâncio- Durante o nono século, quando Teófilo (o Iconomach) foi o Imperador de Bizâncio (829-842), os sábios homens de Bagdá concluíram em um de seus encontros que era impossível para eles resolver um certo teorema de geometria. Então, um bizantino que se encontrava próximo apresentou-se e disse que se eles permitissem a ele, ele poderia conseguir uma solução. Quando a permissão foi dada, de fato, ele conseguiu a solução deste teorema afirmando ainda que poderia conseguir ainda soluções de outros teoremas ainda mais difíceis. “Onde você aprendeu estas coisas?”, perguntaram-lhe.   Ele então disse ser discípulo de um sábio matemático de Bizâncio chamado Leo. Então, Califa Mamun enviou um convite a Leo para ir a Bagdá e ensinar matemática. “Se vieres” , ele lhe escreveu, ‘toda a raça dos Sarracenos se prostrará diante de vós e vós ganhareis riquezas e presentes que nem mesmo os humanos gozaram”. Teófilo não deu a Leo permissão de ir. De preferência, ele nomeou-o professor da Alta Escola de Constantinopla. Mamun continuou insistindo e escreveu o assunto ao próprio imperador, deixando a clara impressão de que ele reconheceria a condescendência do imperador como indicação de um favor, e lhe prometeu em retorno estabelecer uma paz contínua e enviar-lhe dois mil quilos de ouro. Teófilo novamente recusou. Deve-se levar em consideração os eventos amargos e sangrentos envolvendo guerras entre os árabes e os bizantinos e a competição destas duas raças para compreendermos a atitude de Teófilo. Esta anedota não mostra apenas a sede dos árabes por conhecimento, mas também o brilho de Bizâncio e um de seus melhores momentos.

11) Como os árabes viam Aristóteles—Veremos agora como os árabes viam Aristóteles. Em torno de 840 d. C. uma seleção de textos das Eneadas de Plotino foi traduzida ao árabe com o título Teologia de Aristóteles! Na introdução desta seleção, a visão que foi defendida era de que as quatro hipóstases de Plotino (o Uno, o Nous, a alma e a matéria) correspondiam a quatro causas de Aristóteles (final, aquela do movimento, material e aquela que cria). Ao mesmo tempo, outro  pseudo-aristotélico trabalho é traduzido como se fosse aristotélico, contendo extratos dos elementos da teologia de Proclus (quinto século). Assim, a filosofia árabe na medida em que segue os Gregos, enquanto esteve interessada em Aristóteles, não o seguiu diretamente e sim através de textos neoplatônicos! Isto, de fato, é um estranho agrupamento destas duas instâncias filosóficas; por um lado, aquela de Aristóteles, cuja mente racionalista e empirista usa a orientação lógica e positiva do pensamento e por outro lado aquela do Neoplatonismo, que se apresenta como uma mitologia dos poderes espirituais nos quais todo o universo parece estar mergulhado e que pode apenas percebê-lo como um insight. Há, porém, uma característica do espírito árabe de ser capaz de facilmente mover-se da tese espiritual para a antítese, em outras palavras, para adaptar-se e ser adaptado. Ela apresenta uma curiosa forma de sincretismo. Deste estranho casamento do aristotelismo e do neoplatonismo, a filosofia árabe surgiu, em muitos dos seus pontos, como um comentário e nova interpretação de Aristóteles.

12) A Introdução de Aristóteles ao Ocidente- Adicionaremos aqui que os Ocidentais começaram a se familiarizar com Aristóteles do século 12 em diante (isto é, com textos, comentários e interpretações  aristotélicos) quase ao mesmo tempo que os árabes da Espanha e de Constantinopla. Em 1210, a Metafísica de Aristóteles foi lida em Paris, tendo sido comprada lá de Constantinopla e traduzida ao Latim. Neste momento o primeiro grupo de Helenistas formado no Ocidente foi formado, o qual traduziu quase exclusivamente os trabalhos de Aristóteles em um sentido literal e quase incompreensível. De seu interesse pelas obras de Platão, traduziram o Fédon e o Ménon. Nós podemos entender o imenso significado desta peregrinação e transplantação de Aristóteles da Grécia para Bizâncio e deles para os árabes e destes dois últimos para o Ocidente.
Já que chegamos ao Ocidente, devemos parar aqui por um momento. Quando Aristóteles bateu em suas portas, os ocidentais, que  estavam a pouco tempo sedentos por conhecimento e sabedoria, já tinham desenvolvido algum movimento filosófico. Foi com esta sede que eles tomaram em suas mãos os primeiros textos de Aristóteles, sem, no entanto, estarem em posição de entendê-lo e julgá-lo. O que lhes faltava acima de tudo era um sentido histórico necessário, que lhes permitiria localizá-lo no contexto daquele tempo, e, consequentemente, entende-lo propriamente.  Então, foi dado a eles, como dissemos, em larga medida, uma forma corrompida. Aristóteles, surpreendeu os ocidentais do modo como ele negociou seus problemas, um modo que era completamente estranho ao seu próprio entendimento teológico e num sentido que os lançou em confusão. Tal foi a confusão ou rebuliço criado pelo estudo de Aristóteles que o próprio papa proibiu o estudo da Metafísica e o da Física, ou perguntou pelas edições que podiam ser removidas daqueles textos que pareciam estar em oposição aos dogmas da Igreja. Porém, uma vez que a autoridade de Aristóteles e a sede dos Ocidentais pelo conhecimento aumentou mais e mais, a Igreja ocidental deixou de condenar Aristóteles, e condenou somente aqueles que extraíssem dos textos de Aristóteles ensinamentos que contradissessem a fé cristã. Assim, uma longa história começou no Ocidente de cristianização de Aristóteles, que marcou-se pela busca de encontrar nele armas, não contra, mas em defesa da Cristandade. À altura deste movimento encontramos São Tomás de Aquino.
Aquino se comprometeu a demonstrar que enquanto a filosofia aristotélica era, de fato, autônoma e independente do dogma cristão, ela, de fato, concordava com ele.  Esta percepção conduziu-o a seguinte conclusão: o que é filosoficamente verdadeiro também o é para a Cristandade. Assim, então, a verdade filosófica e a Cristandade se alinham. É digno de nossos tempo observar que Aristóteles deu ao Ocidente a oportunidade para criar uma nova filosofia. Isto porque Aquino, ao interpretar Aristóteles deste modo, era, de fato, capaz de estabelecer um pensamento aristotélico, uma nova filosofia.
A partir de então, até o século 15, a autoridade de Aristóteles dominou o movimento filosófico ocidental, naquilo que é conhecido como “Escolasticismo”. Em seu trabalho os Ocidentais, como os árabes antes deles, foram significativamente assistidos pelos bizantinos, especialmente por João Damasceno, cujos primeiros trabalhos, no qual uma orientação análoga para a reconciliação de fé e razão é apresentada, foram estudados e usados acima de tudo por Tomás de Aquino. Tomás de Aquino foi também grandemente assistido pelos comentários de Philoponus sobre a obra de Aristóteles De Anima,  que constituiu um problema central para a sua própria síntese filosófica. A prova disto é que Tomás de Aquino incluiu em seu trabalho quase um comentário inteiro de Philoponus. O brilho filosófico de Bizâncio para o Ocidente não foi adequadamente estudado. Destas indicações, porém, e de outras que possuímos, parece claro que este brilho foi muito significativo.
Não é estranho para a origem de nossa questão ter falado sobre os árabes e os ocidentais. O que foi dito no primeiro exemplo indicou o transplante do espírito grego e bizantino para a Arábia, onde uma nova interpretação de Aristóteles foi desenvolvida. Então, mais tarde, nós mostramos que tipo de atmosfera foi criada no Ocidente com o quase exclusivo uso de Aristóteles, que nos ajudou a apreciar tanto quanto deveríamos a última grande contribuição espiritual de Bizâncio para o Ocidente;  eu quero dizer, obviamente, do movimento que foi representado por Plethon e Bessarion (século XV) sobre o qual iremos falar mais adiante.


quinta-feira, 25 de julho de 2013

O primórdio aristotélico

BRADSHAW, D. Aristotle East and West : Metaphysics and the Division of Christendom, Cambridge: Cambridge University Press, 2006, páginas 1 a 23. (tradução do inglês por Rochelle Cysne).

O primórdio aristotélico

                 Apesar de Aristóteles nunca ter levado o crédito de cunhar a palavra energeia, quase não há dúvida de que o termo foi invenção sua. Ela não aparece em nenhum lugar da literatura Grega anterior a Aristóteles, e mesmo algumas décadas após a sua morte ela se restringe aos trabalhos filosóficos, particularmente aqueles da própria escola aristotélica. Contrastando a isto, ela aparece 671 vezes nos trabalhos de Aristóteles, cerca de uma vez a cada página na edição de Berlim. Desafortunadamente Aristóteles discute sua etimologia apenas uma vez, observando brevemente que energeia é derivada de "ação", "ergon" (Metafísica IX. 8 1050a22). Ainda que isto nos conceda uma última fonte do termo, a combinação de en com ergon já tinha precedentes do Grego, e é provável que essa tenha sido sua fonte mais próxima. Os dois candidatos acessíveis são energos, um adjetivo significando "ativo, efetivo", e energein, um verbo significando "ser ativo ou efetivo para operar". Em ambos os casos o sentido do radical de energeia é alguma coisa tipo "atividade, operação ou efetividade". Dizer mais do que isso baseado em etimologia seria temerário. 

                         Uma maneira de proceder sobre este ponto seria listar os vários sentidos ao modo de um glossário, ilustrando cada um deles por textos representativos. (Veja Chung-Hwan Chen, "Different meanings os the Term Energeia in the Philosophy of Aristotle", Philosophy and Phenomenological Research 17 (1956), 56-65, para um exemplo desta abordagem). Tal procedimento não explicaria o que unifica os vários significados na mente de Aristóteles e porque ele acreditou ser apropriado usar o mesmo termo para todos estes casos. Isso arriscaria deixar de lado as nuances mais sutis do termo, além de que não seria suficiente para iluminar os vários sentidos de "energeia" que nos interessam e seu desdobramento em múltiplas direções. Entre as questões que nós eventualmente devemos nos perguntar são aqueles que Aristóteles deixou como "não ditas" - quais novos desdobramentos do conceito ele sugere ou convida. A melhor preparação para endereçar esta questão será traçar o desenvolvimento de "energeia" em sua própria obra. 

                           Tal abordagem inevitavelmente levanta a questão polêmica da cronologia do desenvolvimento de Aristóteles. Apesar de muitos bons estudiosos terem tentado trabalhar com uma cronologia, Werner Jaeger primeiro popularizou uma abordagem de desenvolvimento dos estudos aristotélicos na década de vinte, não se pode dizer que enormes obstáculos desse empreendimento foram superados. Não há apenas escassez  de evidência relevante, tanto interna quanto externa; a maior dificuldade reside no fato que Aristóteles parece ter revisado e retocado seus trabalhos ao longo de sua carreira, de modo que alguns deles podem conter estratos de vários períodos diferentes. Isto cria uma quantidade desanimadora de descrições na construção de possíveis cenários. É verdade que certos fatos podem ser conhecidos com confiança razoável - por exemplo, que o volume do Órganon é anterior ao da Metafísica. Mas é froçoso demais, tecer uma cronologia a partir apenas de tais fatos.

                            Minha própria abordagem será invocar uma estimativa cronológica relativa, particularmente aquelas partes que receberam um acordo mais estreito. O que torna isso possível é que o tipo de desenvolvimento que nos interessa aqui é antes conceitual que cronológico. nada teria impedido Aristóteles de desenvolver uma nova aplicação do termo enquanto continuasse a aplicá-lo no sentido antigo, de modo a dar uma uma justificação sistemática mais tarde. Melhor do que especular sobre a ordem precisa da descoberta e da exposição, é mais profícuo focarmos nos argumentos pelos quais Aristóteles moveu-se de uma aplicação característica do termo para a próxima, ou, onde não há argumentos explícitos, na afirmação que pode ter feito tal etapa parecer natural. Ainda que o cálculo resultante permaneça suscetível de revisão à luz de uma pesquisa em andamento, desde suas alegações cronológicas modestas, devemos possuir uma quantidade modesta de resiliência?


sábado, 25 de maio de 2013

O que tem a ver Atenas com Jerusalém?

Prefácio ao livro: Aristotle East and West
BRADSHAW, D. Aristotle East and West : Metaphysics and the Division of Christendom, Cambridge: Cambridge University Press, 2006, páginas IX a XIV. (tradução do inglês por Rochelle Cysne).

Prefácio:


                O que Atenas tem a ver com Jerusalém? Esta é uma questão que nenhum estudante ocidental pode rejeitar. Tertuliano, quem a primeiro colocou, a fez no sentido de acusar a filosofia de engendrar a heresia. A implicação por trás desta questão é que Atenas e Jerusalém são dois mundos tão distantes, o que por conseguinte nos leva a concluir que as categorias do pensamento Grego não têm nenhum lugar na fé Cristã. Ainda que o próprio Tertuliano encontrasse a impossibilidade de, na prática, manter essa estrita divisão. A Igreja, como um todo, ao invés disso, tendia a seguir os apologistas gregos, que tinham esboçado livremente a Filosofia Grega  ao interpretar a mensagem cristã. Finalmente as muitas formas de pensamento cristão que competiam pelo completo predomínio durante a Idade Média e o Renascimento, e durante a era moderna, quase invariavelmente devem muito a estes dois mundos opostos de Tertuliano.  O resultado é que Atenas e Jerusalém foram profundamente e inextricavelmente entrelaçadas na formação da cultura ocidental.

              Esta fusão dá à questão de Tertuliano um significado diferente e mais alarmante. Vislumbrado à luz da intervenção histórica, a questão não é simplesmente se a teologia cristã deve ou não fazer uso da filosofia grega; é se as duas grandes fontes de nossa civilização são compatíveis.Sustentar que não são é necessariamente por em questão, não só pelo menos um deles (e talvez ambos), mas também a civilização que surgiu desta união. Quaisquer que sejam as próprias opiniões acerca desta questão, é por demais evidente que a nossa cultura como um todo tem dado uma resposta negativa. Nenhum conflito é mais familiar, ou recorrente em suas mais variadas formas, do que aquele entre os apóstolos da razão e do esclarecimento e aquele da autoridade moral e da verdade revelada. Nas guerras culturais em curso, e no suposto conflito entre ciência e religião atual, parecem mostrar que Atenas e Jerusalém estavam em guerra diante de nossos olhos. A própria existência destes conflitos reflete um sentimento persuasivo de que razão e revelação estão em desacordo. Alguns de nós respondem a esta situação alegremente, dando boas vindas à chance de escolher decisivamente entre um ou outro. Outros a encaram com mais ambivalência e mesmo com a sensação de que algo precioso foi perdido. Se escolhe-se com alegria ou relutância, porém, o fato inescapável é que nossa cultura exige que escolhamos.

               Não foi sempre assim. A história da filosofia ocidental é, entre outras coisas, a História da tentativa de harmonizar Atenas e Jerusalém. Se hoje, nossa cultura faz questão de dizer que elas não estão em harmonia, então a razão disso deve jazer, em última análise, no naufrágio desse esforço. Aqui é onde entra o historiador da Filosofia, especialmente da Filosofia em sua relação com o pensamento Cristão, focalizada em uma importante e porque não dizer, urgente, missão. Quando, e porquê aconteceu esse naufrágio? Ele foi inevitável? Houve talvez um desvio de rota, de modo que se tivesse sido distinto o caminho o resultado poderia ter sido outro? E em caso de resposta afirmativa a esta questão, há ainda possibilidade aberta a nós? Ou a história encerrou agora tudo, de modo que o divórcio entre Atenas e Jerusalém é um fato para o qual podemos responder de diferentes maneiras, mas o qual não pode em si mesmo ser posto em questão.

               Tal foi a linha de pensamento que suscitou este estudo. Eu proponho considerar estas questões particularmente à luz da divisão entre as duas metades da Cristandade, o Leste falante do Grego e o Ocidente falante do Latim. É certamente importante frisar que, vistos de um ponto de vista histórico, o naufrágio da fé unida à razão foi um fenômeno estritamente ocidental. No oriente cristão, não ocorreu tal resultado. A importância desse fato foi obscurecida porque, até recentemente, os Cristãos do Leste eram considerados de maneira estreita pelos Cristãos Ocidentais como heréticos. Apenas em tempos recentes tornou-se claro como foi grosseiramente equivocada essa atitude e fonte de muitos prejuízos. Quanto mais o cristianismo oriental comece a ganhar legitimidade, mais a reação contra o Cristianismo ocidental começa a ganhar ares de uma disputa local. A Cristandade Oriental tinha, dede o início, um modo fundamentalmente diferente de compreender toda a gama de questões relativas à relação entre fé e razão. Pode ser que o naufrágio ocorrido no Ocidente deixe esta tradição oriental intocada. No mínimo, se nós entendemos a longa história da filosofia ocidental propriamente, então temos de levar em consideração a alternativa oriental.

                 Este trabalho é o início de uma tentativa em empreender isto. Ele se foca na formação destas duas tradições, leste e oeste, uma a outra em paralelo. Eu levo em consideração até o ponto em que cada uma delas alcançou uma forma definitiva - isto é, Tomás de Aquino no Oeste e Gregório Palamas no Leste. No caso da tradição, foge do meu poder uma plena história da formação filosófica, muito menos de todos os demais fatores que contribuíram para seu caráter distintivo. Meu foco é estritamente na metafísica fundamental que ajudou a determinar suas diferenças e que são mais relevantes para avaliar a viabilidade de sua continuidade. Eu me esforcei em tratar o material histórico imparcialmente com o objetivo de chegar a uma compreensão solidária de ambas as tradições, com seu próprio contexto. Minhas conclusões sobre o significado desta história, e sobre a viabilidade destas duas tradições, serão encontradas no Epílogo.

               Até mesmo para se contar uma história comparativa limitada requer-se uma peça de ligação, e exige-se rastrear o ponto de divergência que torna as duas realidades paralelas. Esta peça de ligação que encontrei está no conceito de energeia. Este é um termo Grego que é variadamente traduzido como "atividade", "atualidade", "operação" ou "energia", dependendo do autor e do contexto. Sua adequação para nosso propósito surge a partir de um número de razões convergentes. No Leste tornou-se o termo chave da teologia Cristã iniciada com os Padres Capadócios no século quarto e continuou através do trabalho de Palamas no século XIV. A distinção entre ousia e energeia, essência e energia, foi reconhecida como o princípio filosófico mais importante, pois por ele há distinção entre o pensamento Cristão oriental da contraparte Cristã ocidental. (veja particularmente os trabalhos de Vladimir Losski e João Meyendorff). Ainda que virtualmente haja mais sobre este assunto que seja matéria de disputa, incluindo seu significado, sua história e sua legitimidade. O único sentido para se resolver estas disputas é dar uma história compreensiva da distinção das raízes Bíblicas e filosóficas em Palamas. A história, por outro lado, pode ser abordada através do conceito de energeia. 

                 No Ocidente o termo que pode ser quase comparado à energeia em sua importância para nossa discussão é esse, o Latim infinitivo para "ser". É bem conhecido que Agostinho identificou Deus com o Ser próprio em si mesmo, ipsum esse, e que Aquino fez esta desta identificação a pedra de toque de uma teologia natural cuidadosamente raciocinada. O que é bem menos conhecido é que o termo esse - particularmente no sentido dado por Aquino, que é o "ato de ser" - tem uma história de conexão com energeia. Os primeiros autores latinos a usar esse neste sentido foram Boécio e Caio Mário Vitorino. Eles, por sua vez,estavam simplesmente traduzindo para o Latim o idioma filosófico dos neoplatonistas gregos como Porfírio. Em particular, esse como o ato de ser é o equivalente direto do energein katharon Grego, o "ato puro" que Porfírio ou alguém em seu círculo (o autor do Comentário Anônimo sobre o Parmênides) identificou com o UNO. Isto significa que o esse em seu uso particular pode ser entendido como derivando de energeia. Claro que se pode levar em conta que  esse não se originou neste sentido, mas adquiriu certas ressonâncias adicionais, e que nem todas elas permaneceram operativas no uso posterior. No entanto, como quadro preliminar, pode-se pensar um tronco comum, energeia tal como aparece no Neoplatonismo, desdobrou-se em dois troncos: "energias" no Leste e "esse" no Oeste.

                  É apenas uma primeira aproximação. Parte do que fica de fora é que energeia tinha também um uso não filosófico que foi pelo menos tão importante para o desenvolvimento do pensamento oriental como foi a influência do Neoplatonismo. Este uso não filosófico pode ser encontrado nos escritos científicos e filosóficos, nos papiros Gregos sobre magia, e acima de tudo no Novo Testamento e nos primeiros Padres da Patrística. Para entender a distinção entre essência e energia requer-se observá-la à luz de uma história prévia. Uma história anterior ao neoplatonismo, pois o neoplatonismo mesmo é impossível de ser compreendido sem alguma apreciação de suas origens. Teses tais como o Uno está além do intelecto, ou que o intelecto é idêntico ao seu objeto, ou que o efeito pré existe na causa, são capazes de aplacar os leitores mais modernos como irremediavelmente obscuras até que se entenda sua relação a outros argumentos que os justificam. Pois a maior parte destes argumentos foi formulada primeiro por Platão e Aristóteles, ou fez uso de conceitos e de terminologias utilizadas por eles. Felizmente, já que nossa discussão gira em torno do termo energeia é suficiente começar com Aristóteles, que cunhou este termo.

                  Mais amplamente, há um modo de se concentrar exclusivamente na tradição cristã, examinando os desenvolvimentos prévios somente como um preâmbulo, o que distorce a história. Tanto os autores pagãos quanto os Cristãos estavam tratando das mesmas questões fundamentais, muitas vezes com base em uma ação compartilhada por um vocabulário comum e pelas mesmas ferramentas conceituais. Não se pode comparar o Comentário Anônimo e Vitorino, ou Jâmblico e os Capadócios, ou Proclus e Dionísio -ou, mesmo pelo assunto, Aristóteles e Aquino - sem reconhecer que o que eles têm em comum é tão importante quanto o que possuem de diferente. É apenas observando tanto a tradição oriental quanto a ocidental como a evolução de um patrimônio comum da metafísica clássica que ambas podem ser propriamente compreendidas.  Fazer isso também tem o mérito de desviar o foco da comparação nas questões dogmáticas e eclesiológicas, centrando-se nas questões metafísicas fundamentais. Se este livro não servir a nada mais do que isto, espero que mostre que este é o modo correto de análise, e que na falta disso não há como interpretar toda a questão da relação entre as duas tradições.  

                Tudo isso nos ajudará a explicar a estrutura do livro. Ele começa por traçar a raiz comum de ambas as tradições, de Aristóteles até Plotino (Capítulos 1-4); em seguida procura os desenvolvimentos preliminares no Ocidente (capítulo 5) e no Oriente (capítulo 6); e então traça o crescimento da tradição oriental (Capítulos 7 e 8); e finalmente completa ambas as tradições por meio de uma comparação sistemática de Agostinho, Aquino e Palamas (capítulo 9). O Epílogo toma o que este Prefácio deixa de fora, perguntando de que modo a comparação destas duas tradições pode lançar luz à nossa situação atual.

                 Poucas questões assépticas serão úteis ter em mente. Os leitores não habituados com os textos da patrística devem ser alertados que eles muitas vezes possuem dois sistemas de numeração que correm em paralelo. Assim, enquanto que Eneadas I.6.9 significa seção 9 do tratado 6 do livro I das Eneadas, De Trinitate X.8.II significa seção II ou capítulo 8 do  De Trinitate, dependendo de qual sistema esteja sendo usado. (Muitos editores dão ambas). Ao reconhecer as traduções, fiz uso de traduções disponíveis na medida do possível mas as alterei livremente a fim de manter a consistência terminológica e estilística. Isto é particularmente verdadeiro no caso das traduções antigas dos trabalhos patrísticos. Um ponto em que perdi toda esperança de consistência esteve na escolha dos títulos em Latim ou Inglês; eu os usei ambos indiscriminadamente, como determinado pelo uso comum. Eu, na maior parte das vezes, citei edições e traduções em formas abreviadas nas notas, reservando plena informação para a Bibliografia.

                 Capítulos 1 a 5 foram originariamente escritos como uma dissertação sobre o programa de filosofia antiga  da Universidade de Texas em Austin. Eu gostaria de agradecer os membros do meu comitê (R. J. Hankinson, Alexander Mourelatos, S. White, Robert Kane e Cory Juhl) pela condução do projeto. Eu também desejo agradecer John Bussanich, John Finamore, Harold Weatherby, Ward Allen e John Jones pelos vários comentários em várias partes dos capítulos finais. O Capítulo 2 foi originariamente publicado no Journal of the History of Philosophy, e parte do capítulo 5 no review of Metaphysics,  e partes dos capítulos 6 e 7 no Journal of Neoplatonic Studies. Eu agradeço aos editores destes jornais pela permissão de reeditar porções relevantes.

                 Por último, eu gostaria de reconhecer uma dívida de tipo distinto. A maior dificuldade em compreender a tradição do leste tem sido sempre que ela é muito profundamente fixada em uma vivência prática. Mesmo que falemos de "aspectos filosóficos" da tradição há sério risco de distorção. No Leste nunca existiu as mesmas divisões entre filosofia e teologia, ou teologia e misticismo, como no Ocidente, parcialmente porque estas divisões pressupõem um conceito de razão natural que é nele mesmo um produto da tradição ocidental. Para o historiador da filosofia, isto significa que ao se estudar o Leste, encontramos um grande desafio que não é normalmente parte de um território profissional: a discussão detalhada da teologia Trinitária; da oração, da prática ascética, da caridade para com o pobre, da exegese das Escrituras, frequentemente expressa em um vocabulário barrocamente complexo. A tarefa é desembaraçar os elementos reconhecidamente filosóficos de seu contexto sem distorcê-los ou evadi-los de seu significado. Eu não sei se eu tive sucesso, mas estou certo de que eu não teria iniciado, e não teria tido suspeita de como proceder, sem aqueles que me ensinaram alguma coisa do que esta tradição significa como vida prática. Entre eles, em primeiro lugar, minha esposa. Dizer que este livro é dedicado a ela é muito pouco, em minha própria mente, seu nome está escrito em cada página deste livro.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Misticismo Bizantino I: João Clímaco e Máximo

Trata-se do capítulo 8 da mesma obra de Basil Tatakis citada nos posts anteriores. Páginas 109 a 123.
São João Clímaco e São Máximo, Confessor, são santos da Igreja católica Romana quanto da Igreja Ortodoxa. Assim sendo, o legado de ambos não é exclusividade da ortodoxia oriental. O papa Bento XVI possui excelente ensaio sobre Máximo Confessor. O padre Paulo Ricardo de Azevedo comenta a obra de João Clímaco em sua terapia das "doenças espirituais".

Misticismo Bizantino I: João Clímaco e Máximo

Para falarmos sobre a Ortodoxia, precisamos adentrar profundamente em suas raízes místicas. Agora veremos um pouco mais analiticamente o Misticismo Bizantino em seu curso histórico, notando especialmente seus representantes mais importantes e as correntes mais importantes que emergiram neste fluxo.

1) O primeiro crescimento do espírito do asceticismo- Desde muito cedo, já no terceiro século, o espírito do asceticismo foi espalhado e aprimorado. Este é o período de Santo Antônio e Pacômio, o grande asceta do deserto egípcio. Uma grande multidão de Cristãos, que continuaram a aumentar todo o tempo, aceitaram a vida monástica e se voltaram para os mosteiros, a cidade dos anjos como eles chamavam, ou viviam uma vida eremítica, uma vida de 'anacoreta' no deserto, nas cavernas, ou em colunas de antigos prédios. Por meio deste absoluto desapego com relação aos cuidados da vida mundana, eles procuraram garantir espaço, o lazer e o contexto fértil que lhes permitiu avançar na perfeição.

Não demorou muito para que o monaquismo fosse grandemente desenvolvido e adquirisse tremendo prestígio moral. Seu prestígio foi tal que imperadores e patriarcas tinham de guardar na mente os ditos dos monges nos grandes assuntos eclesiásticos, religiosos e políticos. Isso foi natural para uma sociedade como a Bizantina, que viveu não apenas para compreender o ritmo da eternidade, mas também para apropriá-la aqui nesta vida terrena. Exatamente por isso, os Bizantinos acreditaram ser os monges capazes de alcançar um grau mais elevado de vida, com o tipo de vida que escolheram seguir. Eles eram os místicos, podemos dizer, da eternidade. Eles foram aqueles que se ergueram das coisas terrenas e mundanas para os lugares celestes.

Por toda parte em toda a era Bizantina, o asceticismo constitui um dos tons principais da vida, em muitos exemplos o mais importante. Foi natural encontrar nos círculos ascéticos a essência mística da Cristandade ser expressa mais vividamente. Todas suas vidas, desde os detalhes mínimos, lentamente e gradualmente conquistaram um sentido místico e simbólico, pensados e visualizados para um propósito maior. O hábito do monge, diz Santo Doroteu (século sexto), não possui mangas para que o monge possa chorar ao seu modo e para que ele não tenha mãos para o serviço do mal.

2) As duas correntes do asceticismo bizantino. Os monges, porém, não se tornaram conscientes de seus problemas em toda sua profundidade, nem todos o viram do mesmo modo, nem se voltaram todos eles para as mesmas questões. Isto é exatamente nossa tarefa aqui: tentar compreender os passos que foram tomados pelo misticismo bizantino em suas linhas mais importantes de desenvolvimento. Nesta minha visão, podemos distinguir em Bizâncio, duas grandes correntes de asceticismo que sempre coexistiram.

Por um lado, nós temos a forma externa mais popular, que foi dominante nos círculos dos simples monges e que foram formadas principalmente nos desertos do Egito. O principal objetivo neste misticismo foi 'a luta contra a carne'. Eles exercitavam a carne e a sujeitavam a todo tipo de prejuízo, já que por ser material, ela constituiria a encarnação do mal. Este tipo de asceticismo voltou-se com interesse especial para uma multidão de responsabilidades da vida cristã. Seu tema mais apreciado e familiar era um tratado sobre as virtudes e seus vícios correspondentes. Suas questões frequentemente nos lembram o espírito do neoplatonismo (que a matéria é um mal), e o asceticismo dos cínicos (na busca pela virtude). Desafortunadamente, este asceticismo mais popular e empírico e frequentemente mais visível, foi compreendido apenas  na base de seu excesso, e disso, muitas afirmações injustas foram lançadas sobre Bizâncio. O fato, porém, é que, mesmo este asceticismo nos deu tipos excepcionais de homens virtuosos que foram santos.



3) João Clímaco e sua escada.
No topo destes homens está João Clímaco, ou Escolástico (525-605). Ele foi chamado Escolástico por conta de sua grande erudição, e Clímaco por conta de sua principal obra intitulada Escada Espiritual (Κλϊμαξ πνευματική).

A  escada apresenta a mais alta forma de espiritualidade a qual este misticismo popular poderia chegar. É a suprema interpretação que pode ser dada ao misticismo baseado na sede de perfeição, o profundo amor pelo modo angélico de vida (a comunidade dos monges), em suma, pela virtude monástica. O nome deste trabalho único - a Escada - deriva da escada celeste vista por Jacó em sonhos. Os trinta capítulos, nos quais ela está subdividida e que são também chamadas de trinta degraus, alegoricamente denota os trinta anos da vida oculta de Jesus.

Escada foi a mais amada leitura dos monges bizantinos, mas também dos leigos. Poucos livros foram mais extensivamente lidos do que este. Há uma rica variedade de manuscritos nos quais esta obra sobrevive. Ademais, há muitas traduções desta obra em Siríaco, Latim, Espanhol, Francês, e dialetos eslavos que revelam seu alcance e reputação largamente.

Olhemos ao conteúdo da Escada. O autor começa com a ideia de que o monastério é a escola preparatória para a vida futura. O monge gasta todo o tempo de sua vida lá como um discípulo que se engaja numa forte batalha de modo a chegar ao cume da perfeição. Ele luta contra si mesmo e contra os demais inimigos. A Escada serve como guia e é designada para lhe mostrar o método pelo qual ele pode vencer a batalha e seu coroado como vencedor. Este método é, em última análise, uma pedagogia ou, melhor, um condutor da alma, como Platão teria dito de sua própria filosofia, embora com conteúdos distintos. A essência dela é como pode ser conduzida a alma de um pecador imperfeito, que entendeu o sentido da miséria do pecado em que tem vivido, para encontrar e voltar-se ao caminho da Luz que não se apaga, Deus.

Nesta difícil tarefa, o monge não pode esperar (e isto constitui a tônica mais essencialmente cristã) que ele será capaz de atingir a perfeição por si mesmo; isso engendraria a pior forma de egoísmo. O monge tem de chegar à suprema forma de humildade. com a qual ele limpará de si mesmo qualquer traço de egoísmo e assim adquirirá o poder de ser unido ao seu guia, seu pastor. Mas quem é o verdadeiro guia e pastor? A Escada diz que aquele que procura e descobre os que estão perdidos com sua própria bondade e sua própria atividade efetiva e oração, só pode ser o próprio Deus e isto pressupõe a própria batalha divina. Com tal poder pode-se salvar uma barco da tempestade, mas mesmo tirá-lo do abismo. O verdadeiro pastor conhece Deus por conta de uma luz interna que torna todos os textos redundantes. Não convém aos professores guiar os estudantes com cópias, com conhecimento que venha de fora. O verdadeiro pastor oferece às suas ovelhas suas próprias almas. O pastor reconhecerá esta sabedoria que vem de Deus quando ele puder conduzir à perfeição não apenas aqueles que são diligentes mas aqueles que são insubordinados e brutais. Ele nunca deixará de desempenhar o papel de 'lógos' às suas ovelhas mesmo quando eles pastam, ou quando vão dormir. Não há nada que  os lobos temam mais do que o eco da voz do pastor. É claro que o protótipo para os pastores na Escada é o próprio Cristo como o Divino Pastor. Mas examinemos por quais métodos os monges devem se guiar uma vez que encontraram o Pastor. Isto é descrito em 30 etapas (degraus).

4) A metodologia espiritual da Escada. O ponto inicial para a vida Evangélica é a renúncia às coisas mundanas e o seu fim é a impassibilidade (απατεια) a que se chega com sucessivo progresso. O monge, de acordo com a Escada, "é uma ordem e estado incorpóreo" dentro de um corpo material e incorpóreo. Ele começará, como dissemos, com a renúncia das coisas corpóreas, tão completamente quanto possível; e esta renúncia das coisas externas será seguida por um desprendimento interno das coisas do mundo. Em seguida, virá a saída do mundo. Sair significa, deixar tudo; este desprendimento é alcançado quando se está indissoluvelmente atado a Deus em pensamento. Esta partida nos salva da idolatria de ser vaidoso, a não existência, para alcançarmos o ser que verdadeiramente existe. Apenas em dois sentidos chegamos à 'impassibilidade' que é a 'morte da alma e a morte da mente, antes da morte do corpo'.  Neste sentido, a vida ascética o desviará de ter atenção ao que quer que lhe aconteça, ou ao seu redor, em uma medida humana, e o preparará a receber um outro ego, para entrar, como se fosse em outra vida para receber aquele que transcende o homem, Deus. Condenando à morte o mundo que está dentro dele, ele ressurge numa vida contemplativa. Esta perfeita saída torna-o digno daquela obediência que equivale à "mortificação dos membros no interior da mente vivente". O homem que chega a esta perfeita obediência apenas se lamenta quando ele se pega cumprindo sua própria vontade.

Neste perfeito isolamento, o monge  terá o estudo da morte como sua companhia fiel. O historiador Procópio já havia chamado a vida do monge como "um perfeito estudo da morte". O que é a morte, porém?  Morte, em significado mais próprio, é a separação de Deus. O verdadeiro asceta reconhecerá todos os dias que ele gastou seu tempo sem luto, considerando o dia perdido. Por que ele deve estar em luto? Por que o estudo da morte é uma morte diária e o estudo do momento que o espírito se livra em um suspiro incessante.  O asceta teme a morte porque ela pode vir a qualquer momento quando ele não estiver preparado; ele teme a morte que é a separação de Deus, a morte da contemplação que é ressurgir para este mundo. Ao estudar a morte, consequentemente, e ao estar em estado de perda, ele luta contra a morte e trabalha pela imortalidade. "É estranho, de fato" diz João Clímaco, "que os Gregos também dissessem alguma coisa análoga já que definiam a filosofia como o estudo da morte". Ele tinha em mente o Fédon de Platão, mas é claro que no caso de Platão, temos uma postura puramente dialética, ao passo que no caso de João ela é puramente mística.

Quando o monge vence toda sua fraqueza e os vícios da carne e da alma e quando ele se afasta do mundo e é gerado em seu pensamento o que está acima da criação, com um amor vigoroso pela virtude e por Deus, então, finalmente, ele chega a uma quietude santa de corpo e alma, cujo fim é a 'impassibilidade', a paz de uma alma redimida do tumulto das paixões. A única coisa que permanece nele é sua união com Deus. Para tanto, apenas a oração pode conduzi-lo, a oração que é uma conversação familiar do homem com Deus. Em sua perfeita forma, a oração é a experiência de ter-se tornado cativo de Deus.

5) Asceticismo, grego e cristão. O pensamento ascético contém, conforme já vimos, uma multidão de elementos da diatribe cínica e o discurso das virtudes dos estoicos, como também o tema neoplatônico da repulsa pela matéria. Isto não constitui, porém, uma regeneração da razão prática dos antigos. Logo é desnecessário reiterar que todos os elementos gregos são agora batizados na atmosfera cristã. As principais virtudes são agora fé, esperança e caridade, e a maior de todas, diz João Clímaco, é a caridade.

Amor incessante a Deus é a principal característica de uma alma pura. Unida a Deus pela pureza, a alma não terá necessidade da mente para ensiná-la. Neste estado abençoado, ter-se-á no interior de sua mente um líder místico e guia de luz. O homem não chega a Deus por um procedimento intelectual ou dialético, mas por uma união erótica de sua alma a Ele. João Clímaco é aquele que caiu de amor por Deus. O Menologion (livro litúrgico de cada mês) no dia 30 de Março diz que João Clímaco viveu por quarenta anos, como um anacoreta com um amor ardente e que sua alma estava queimando com o fogo do amor divino. É também dizer que este sentido de vida foi resultado da oração incessante e de amor infinito por Deus.

Este eros, porém, ainda não chegou à sua conclusão, já que o eros do homem para com Deus é mais destacado do que o eros de Deus para com o homem. É ainda sob a influência da Filosofia Platônica e Neoplatônica vista como um amor pela verdade. Sua conclusão chegará mais tarde, como será visto, principalmente com Simeão, o Novo Teólogo. Mesmo assim, deve ser dito que esta noção da união erótica da alma a Deus constitui um evento significativo; ela introduz para a vida da emoção aquele rico tom do qual deriva o idealismo moderno. Aqui, então, em Bizâncio e no contexto da teologia, eros toma a iniciativa. O sentimento cristão de pecado, por um lado, e a idealização da Mulher na personificação da Santíssima Virgem, por outro, nos dá o clima no qual "eros" em Cristo apareceu em todo o seu brilho ideal como o "eros" de um esposo, casado com a Igreja, que leva a alma para as alturas do casamento místico com Deus. A honra especial concedida à Santíssima Virgem já é acentuada no século sétimo: na pessoa dela, a mulher é idealizada, e isto é mais claramente revelado no famoso trabalho de Teófilo e Cassiano, que respectivamente representam o espírito do Antigo Testamento e o espírito do Novo Testamento com reconhecimento ao papel da mulher.

Quando esta ênfase mais tarde se volta para as relações humanas, define o supremo ideal, que faz de eros a figura de um cavalheiro que vê a mulher como um ser superior, como uma encarnação dos mais preciosos ideais de virtude e pureza. Em outras palavras, o eros dos místicos para com Deus é encontrado na base, ou constitui a fonte deste idealismo que é exibido no eros dos tempos modernos e que constitui uma das diferenças essenciais entre o mundo antigo e o moderno.

Foi apenas no Oriente então que se formou a Ortodoxia. Esta mesma Ortodoxia com seu eros místico para com Deus revela a riqueza emocional que preenche a vida com um intenso e supremo idealismo. Foi na Grécia Oriental que os textos ascéticos foram primeiro transmitidos a toda a Cristandade, especialmente a Escada, que é cheia de pulsão do divino eros que consome a alma do asceta com fogo.

Dizemos que a Escada frequentemente nos lembra a doutrina dos Estoicos e Cínicos. É verdade que especialmente para os Estoicos o supremo bem é a Impassibilidade, isto é, a serenidade da alma que permite o princípio hegemônico, a mente, estar completamente não distraída e ser realmente hegemônica. Também para João Clímaco, impassibilidade é o último e mais alto estágio. Com isto, o homem chega à mortificação de seus membros e não apenas dos seus membros mas de sua mente humana e de sua individualidade humana, e chega ao grau mais elevado de submissão. Para os Estoicos, a impassibilidade é um fim, e escopo último, a perfeição do homem. Quando ele chega a este estágio, o homem aceita este fato sem qualquer protesto, entra voluntariamente no ritmo do mundo, e aceita o papel que foi destinado para ele pelo Logos (Zeus). Uma vez chegando a este ponto, dizem os Estoicos, se um homem vê que o Logos destinou-lhe o papel de um rei ele aceitará o papel de um rei, mas se ele perceber que o papel atribuído a ele foi de um impostor, ele estará pronto a aceitá-lo. Esta aceitação voluntária constitui a suprema sabedoria de acordo com os Estoicos. Para os ascetas, porém, especialmente para São João Clímaco, a impassibilidade não é um fim, não é uma meta, mas um meio. É a condição a qual chega o homem quando se percebe que fez o que pôde, algo que lhe acontece. É a suprema forma de preparação, não para permanecer, mas para transcender a si, através da qual se pode perceber a luz de Deus ou apresentar-se diante de Deus. É a penúltima etapa antes da deificação, que é buscada pelo místico. É óbvio que é uma 'deificação' de acordo com a 'semelhança', 'pela graça divina' e certamente não 'de acordo com a essência'.

6) De João Clímaco a Máximo Confessor. Além deste misticismo, que chamamos de prático e empírico, que não pode completamente assimilar e transubstancializar a postura Grega (Deus como objeto de Amor), ou superá-la (o repúdio pela matéria) e por conta de onde veio a assemelhar-se muitas vezes à pessoa que procura por coisas externas a despeito de um desprendimento involuntário delas (já que isso se torna uma batalha estéril contra as tentações externas), há em Bizâncio outro procedimento místico mais elevado. Este tipo de procedimento supera o misticismo externo do deserto, perfeitamente adaptado às posições filosóficas habituais à essência da Cristandade, oferecendo um misticismo cristão em sua forma mais completa, e ao mesmo tempo muito mais genuinamente Grego do que os tipos prévios que tinham maiores cores orientais.

Frequentemente vemos em Bizâncio muitas influências orientais, que, podemos dizer, alteram ou modificam a profundidade grega. Nós não vemos igualmente, porém, uma forte batalha dos Bizantinos contra os Gregos em favor de uma essência puramente cristã, mas uma luta para superá-la, às vezes mesmo derrubá-la ou ainda adaptá-la de modo a proteger sua natureza. Assim, por exemplo, na arte, a despeito das influências orientais indisputáveis, é fácil separar a essência grega no sentido da harmonia, na nobreza da linha, e na síntese global. Ora, o mesmo se aplica com relação ao pensamento. Nós vimos como João Damasceno e João Filoponos rejeitaram todo tipo de superstições, preconceitos, teorias mágicas e astrológicas em nome da razão e da piedade cristã.

Nós observamos exatamente a mesma coisa na esfera do asceticismo. De uma batalha contra a carne e o interesse dominante nos deveres externos da vida cristã, o asceticismo é transformado em um procedimento místico em direção à deificação. Em outras palavras, Bizâncio se transforma quase que exclusivamente em uma forma de vida religiosa interna, i. e, a uma relação espiritual direta com Deus. João Clímaco estava pronto para entrar neste caminho. Mas podemos ver mais claramente em Máximo, e em sua forma mais completa, na exaltação do 'divino eros' em Simeão, o Novo Teólogo.

7) Os dois tipos de verdade de Máximo- Há, diz Máximo, dois tipos de verdade, e para sua realização nós usamos dois tipos de instrumento, 'razão' e 'mente'. O primeiro tipo, que nós obtemos com a 'razão', é o conhecimento humano comum, um resultado de silogismos. Para o conhecimento ser possível, porém, Máximo argumenta que deve existir uma correspondência entre o mundo sensível e o mundo inteligível. Há, de fato, tal correspondência? Este foi o problema básico que Platão tentou resolver com sua teoria das ideias e que Máximo tentou resolver através da alegoria e do simbolismo. Cada um destes dois mundos, ele diz, é uma alegoria e um símbolo para o outro para aqueles, é claro, que têm olhos para ver. Assim, o mundo inteligível encontra sua forma específica em um sentido místico nas espécies do mundo sensível que são símbolos. Novamente, o mundo sensível entra através do conhecimento no mundo inteligível e lá é organizado com padrões racionais. O mundo sensível expressa o mundo inteligível ao seu modo (as espécies), e nisto, novamente,  a realidade sensível se apresenta sob a forma de conceitos e silogismos. Logo, nós podemos compreender as coisas invisíveis pela visíveis e, mais importante ainda, nós podemos compreender as coisas visíveis pelas invisíveis por meio da contemplação espiritual. Simbolismo e alegoria estabelecem e pressupõe, como podemos ver, uma teoria completamente racional do conhecimento. Isso é o suficiente para o primeiro tipo de verdade.

O segundo tipo de verdade é a visão da "mente" que une o homem a Deus. Esta não é uma verdade no sentido usual do termo. É a vida em Deus. Por esta razão, se alguém chega a este ponto, um procedimento ascético foi requerido, bem como a aquisição de certas virtudes como o amor, a prudência e a oração.  Sem estes é impossível para a alma vir em contato com Deus de um modo perfeito. A primeira virtude pacifica o poder agressivo da alma (το θυμικον); a segunda regula o poder apetitivo (τήν έπιθυμία); e a oração separa da mente todos seus pensamentos e apresenta-se a Deus completamente desnuda. Pensamentos são percepções de seres existentes, mesmo que sensíveis ou inteligíveis. Quando a mente trata de tais coisas, ela se volta para cocepções derivadas delas. A graça da oração destaca-se a partir destas concepções e se volta a Deus. Assim, porque a mente voltou-se a Deus, torna-se ela mesma deificada pela divina radiação. Nós devemos claramente notar, porém, que nenhum procedimento ascéticos que está desprovido de amor pode nos tornar unos com Deus. É o amor que torna possível a nós tornarmo-nos Deus, por meio do amor de Cristo, que se tornou homem por amor ao homem. Porém, quando é que a oração nos separa de nossas concepções e pensamentos? isto ocorre quando o homem percebe que "ser" é mais do que "conhecer". Esta é uma etapa muito importante e necessária. Apenas assim a mente adquire uma relação íntima com Deus que é Aquele-Que-É (ό Ων), a razão de tudo. Apenas aqueles seres humanos que seguem este contato santo e deificado serão recompensados com a "deificação pela graça" (θεωσιϚ κατα χάριν). 

8) Os dois tipos de perfeição. Como temos dois tipos de conhecimento, duas verdades, assim temos dois graus de perfeição, uma que é conhecer (το γινώσκειν) e ser (το ειναι).  A primeira é própria ao homem e a segunda é própria a Deus. A Graça de Deus pode fazer o homem alcançar a perfeição de ser (το ειναι). Para alcançarmos isto temos de eliminar da alma todo silogismo, toda concepção, para que ela seja purificada. Apenas assim ela será inundada com o "ser". Este impulso para o "ser", que supera o "conhecer", não constitui um método para a coquista da verdade, enquanto realidade sensível, mas preferencialmente uma forma de asceticismo, uma perfeição da vida, uma regra de moralidade e conjuntamente uma filosofia. Nós vemos em Máximo, como vimos em Pseudo-Dionísio, o início das visões que João Damasceno mais tarde deu prosseguimento, os caminhos que todos os místicos da Cristandade seguiram. Também vemos como os temas empíricos dos simples ascetas da Tebaida, e mesmo João Clímaco, tornaram-se nas mãos de Máximo mero discurso teorético (logos), uma investigação esotérica, uma síntese filosófica, que  englobava o todo do universo e tentava interpretá-lo; uma busca não para a missão de luta contra a carne, mas para a iluminação da mente enquanto mente. Quando a mente está esclarecida, então tudo é transubstanciado.

Máximo observa que isto não significa que por conta do "ser" ser mais elevado que o "conhecer" que o último não tenha serventia, ou que devemos desprezá-lo. "Conhecer" é o primeiro estágio necessário, e nós temos que ser treinados nesta escola; devemo-nos nos preparar a nós mesmos para que venha o 'insight' por meio da qual chegamos à 'theosis' (deificação). 'Conhecer' nos revelará os mistérios que estão na raiz das coisas, dando-nos o ímpeto de superá-los. Esta superação não é um ato no escuro irracional, mas um caminho pleno de luz.

9- A criação do homem em Máximo 'pela imagem e semelhança' de Deus. Para compreendermos a profundidade desta antropologia, que está oculta sob este 'insight' e a 'deificação', nós temos de retornar ao Antigo Testamento. Máximo é especialmente atingido pela decisão de Deus na criação do homem. "E Deus disse: façamos o homem à nossa imagem e semelhança" (Gen. 1:26). Máximo faz desta decisão o centro do seu pensamento e a procura na essência do homem, em especial na essência dos Cristãos. "Feito à imagem" significa propriamente, de acordo com Máximo, "a mente e a vontade livre" (το αυτεξουσιον); ela também significa os dons sobrenaturais que são concedidos ao homem "à semelhança de Deus", quer dizer à ordem moral, no exercício da virtude. O termo 'semelhança' significa operação, a habilidade do homem de assimilação o torna semelhante a Deus. Isso pode ser alcançado apenas por aquele que é bom e sábio. Toda decisão de Deus nos obriga a entender como natureza humana aquela natureza que é intacta e com a qual o homem saiu das mãos do Criador, e age de acordo com sua natureza, isto é, de acordo com a razão, mente ('sob à imagem'), lei e virtude ('e semelhança').

A natureza humana, assim entendida, coloca em todo Cristão o dever intensivo de retornar e encontrar sua condição inicial de homem, ou melhor, de realizar em si mesmo a natureza tal qual Deus lhe concedeu. O retorno à condição inicial constitui o objeto do asceticismo de Máximo. Constitui o mais puro chamado ao auto conhecimento (αυτοϒνωσια). Máximo também fornece os meios para se alcançar este fim, um meio incidentalmente muito grego, de diminuir dia a dia mais e mais a parte irracional da alma.

10. O entendimento de Máximo do asceticismo cristão: uma visão geral. O asceticismo de Máximo é imbuído de grande otimismo. É um otimismo que deriva de sua convicção sobre a natureza humana regenerada e a atividade suprema da alma; ela é conectada com as almas virgens e puras que captam o espírito da Cristandade. Tornar-se justo e santo, ser unido a Deus no esplendor do espírito, isto é onde o asceticismo de Máximo conduz. Lembra-nos o Fédon de Platão, onde a deificação da alma está na base de sua purificação (καθαρσις) das paixões. A alma que foi assim purificada está também unida com Deus por meio da contemplação (θεωρια).

Para Máximo, asceticismo não é martírio de uma carne alegadamente impura, mas limpeza de espírito e alma, que é necessária se alguém está unido a Deus que é inteiramente espírito e verdade. Além destes elementos, porém, que possuem uma origem Grega, temos também os elementos bíblicos. A imagem Adâmica do homem faz a natureza espiritual transbordar e espalhar por todo corpo, esperando também abraçar a imortalidade. Assim, a plena realização da natureza humana exige o dom sobrenatural da 'impassibilidade' que conduz a um real estado de ausência de pecado. Há um meio para se alcançar isto. Para realizar esta tarefa, o homem tem de permitir a livre ação do desejo que o Criador colocou na alma do homem, já que Este que lhe deu meios de entendê-lo apenas de maneira obscura. O santo desejo permite ao homem efetivar essa bem aventurança, e redescobrir sua natureza Adâmica. A mente de Máximo frequentemente vai para esta bem aventurança inicial, para o homem do paraíso. Assim, devemos dizer que ele tem nostalgia pelo menor paraíso que seja, o qual ele expressa, até mesmo, em forma de hino.  No coração, místicos são poetas.

Após a Queda, Adão tornou-se um tipo de ser decaído. Por quê? Por que ele desviou sua habilidade de movimento natural para Deus e sujeitou seu espírito à sensualidade, buscando sua felicidade nos entes sensíveis. Com este pecado inicial ou original, o homem perdeu sua harmonia inerente a qual concedia  unidade entre sujeito (homem) e objeto (Deus). Em lugar de harmonia aconteceu desarmonia e em lugar de Deus, sensualidade; disto a iminência de todo tipo de perigo e erro que derivam deles. Em outras palavras, a despeito de seguir o sentido superior o homem optou pelo inferior. No entanto, Cristo veio e alcançou a restauração da humanidade. Ele se fez homem sem pecado, de modo a nos fazer deuses (não de acordo com a essência). A assimilação de Deus pela natureza humana deve ser correspondida pela nossa assimilação de Deus. Assim, o homem que foi criado "de acordo com a plena imagem de Deus" e "semelhança" é obrigado a elevar-se a esta semelhança inicial ou perfeita semelhança. O homem, então, não descobrirá Deus no interior de si mesmo. Em seu interior ele descobrirá apenas sua própria natureza em estado inicial ou de integridade original, tanto quanto os instintos espirituais que o levam à deificação. Esta deificação acontece de um modo que é inefável e místico. Qualquer que seja o reconhecimento que Máximo faz do conhecimento, no fim ele nos mostra claramente que o procedimento racional é insuficiente se estamos querendo chegar a Deus. Nós só podemos ir pelo impulso de sermos unidos a Deus. O impulso de ser unido a Deus e a noção de deificação, estes dois conceitos, constituem a base do misticismo de Máximo, o supremo misticismo de Bizâncio.