sábado, 25 de maio de 2013

O que tem a ver Atenas com Jerusalém?

Prefácio ao livro: Aristotle East and West
BRADSHAW, D. Aristotle East and West : Metaphysics and the Division of Christendom, Cambridge: Cambridge University Press, 2006, páginas IX a XIV. (tradução do inglês por Rochelle Cysne).

Prefácio:


                O que Atenas tem a ver com Jerusalém? Esta é uma questão que nenhum estudante ocidental pode rejeitar. Tertuliano, quem a primeiro colocou, a fez no sentido de acusar a filosofia de engendrar a heresia. A implicação por trás desta questão é que Atenas e Jerusalém são dois mundos tão distantes, o que por conseguinte nos leva a concluir que as categorias do pensamento Grego não têm nenhum lugar na fé Cristã. Ainda que o próprio Tertuliano encontrasse a impossibilidade de, na prática, manter essa estrita divisão. A Igreja, como um todo, ao invés disso, tendia a seguir os apologistas gregos, que tinham esboçado livremente a Filosofia Grega  ao interpretar a mensagem cristã. Finalmente as muitas formas de pensamento cristão que competiam pelo completo predomínio durante a Idade Média e o Renascimento, e durante a era moderna, quase invariavelmente devem muito a estes dois mundos opostos de Tertuliano.  O resultado é que Atenas e Jerusalém foram profundamente e inextricavelmente entrelaçadas na formação da cultura ocidental.

              Esta fusão dá à questão de Tertuliano um significado diferente e mais alarmante. Vislumbrado à luz da intervenção histórica, a questão não é simplesmente se a teologia cristã deve ou não fazer uso da filosofia grega; é se as duas grandes fontes de nossa civilização são compatíveis.Sustentar que não são é necessariamente por em questão, não só pelo menos um deles (e talvez ambos), mas também a civilização que surgiu desta união. Quaisquer que sejam as próprias opiniões acerca desta questão, é por demais evidente que a nossa cultura como um todo tem dado uma resposta negativa. Nenhum conflito é mais familiar, ou recorrente em suas mais variadas formas, do que aquele entre os apóstolos da razão e do esclarecimento e aquele da autoridade moral e da verdade revelada. Nas guerras culturais em curso, e no suposto conflito entre ciência e religião atual, parecem mostrar que Atenas e Jerusalém estavam em guerra diante de nossos olhos. A própria existência destes conflitos reflete um sentimento persuasivo de que razão e revelação estão em desacordo. Alguns de nós respondem a esta situação alegremente, dando boas vindas à chance de escolher decisivamente entre um ou outro. Outros a encaram com mais ambivalência e mesmo com a sensação de que algo precioso foi perdido. Se escolhe-se com alegria ou relutância, porém, o fato inescapável é que nossa cultura exige que escolhamos.

               Não foi sempre assim. A história da filosofia ocidental é, entre outras coisas, a História da tentativa de harmonizar Atenas e Jerusalém. Se hoje, nossa cultura faz questão de dizer que elas não estão em harmonia, então a razão disso deve jazer, em última análise, no naufrágio desse esforço. Aqui é onde entra o historiador da Filosofia, especialmente da Filosofia em sua relação com o pensamento Cristão, focalizada em uma importante e porque não dizer, urgente, missão. Quando, e porquê aconteceu esse naufrágio? Ele foi inevitável? Houve talvez um desvio de rota, de modo que se tivesse sido distinto o caminho o resultado poderia ter sido outro? E em caso de resposta afirmativa a esta questão, há ainda possibilidade aberta a nós? Ou a história encerrou agora tudo, de modo que o divórcio entre Atenas e Jerusalém é um fato para o qual podemos responder de diferentes maneiras, mas o qual não pode em si mesmo ser posto em questão.

               Tal foi a linha de pensamento que suscitou este estudo. Eu proponho considerar estas questões particularmente à luz da divisão entre as duas metades da Cristandade, o Leste falante do Grego e o Ocidente falante do Latim. É certamente importante frisar que, vistos de um ponto de vista histórico, o naufrágio da fé unida à razão foi um fenômeno estritamente ocidental. No oriente cristão, não ocorreu tal resultado. A importância desse fato foi obscurecida porque, até recentemente, os Cristãos do Leste eram considerados de maneira estreita pelos Cristãos Ocidentais como heréticos. Apenas em tempos recentes tornou-se claro como foi grosseiramente equivocada essa atitude e fonte de muitos prejuízos. Quanto mais o cristianismo oriental comece a ganhar legitimidade, mais a reação contra o Cristianismo ocidental começa a ganhar ares de uma disputa local. A Cristandade Oriental tinha, dede o início, um modo fundamentalmente diferente de compreender toda a gama de questões relativas à relação entre fé e razão. Pode ser que o naufrágio ocorrido no Ocidente deixe esta tradição oriental intocada. No mínimo, se nós entendemos a longa história da filosofia ocidental propriamente, então temos de levar em consideração a alternativa oriental.

                 Este trabalho é o início de uma tentativa em empreender isto. Ele se foca na formação destas duas tradições, leste e oeste, uma a outra em paralelo. Eu levo em consideração até o ponto em que cada uma delas alcançou uma forma definitiva - isto é, Tomás de Aquino no Oeste e Gregório Palamas no Leste. No caso da tradição, foge do meu poder uma plena história da formação filosófica, muito menos de todos os demais fatores que contribuíram para seu caráter distintivo. Meu foco é estritamente na metafísica fundamental que ajudou a determinar suas diferenças e que são mais relevantes para avaliar a viabilidade de sua continuidade. Eu me esforcei em tratar o material histórico imparcialmente com o objetivo de chegar a uma compreensão solidária de ambas as tradições, com seu próprio contexto. Minhas conclusões sobre o significado desta história, e sobre a viabilidade destas duas tradições, serão encontradas no Epílogo.

               Até mesmo para se contar uma história comparativa limitada requer-se uma peça de ligação, e exige-se rastrear o ponto de divergência que torna as duas realidades paralelas. Esta peça de ligação que encontrei está no conceito de energeia. Este é um termo Grego que é variadamente traduzido como "atividade", "atualidade", "operação" ou "energia", dependendo do autor e do contexto. Sua adequação para nosso propósito surge a partir de um número de razões convergentes. No Leste tornou-se o termo chave da teologia Cristã iniciada com os Padres Capadócios no século quarto e continuou através do trabalho de Palamas no século XIV. A distinção entre ousia e energeia, essência e energia, foi reconhecida como o princípio filosófico mais importante, pois por ele há distinção entre o pensamento Cristão oriental da contraparte Cristã ocidental. (veja particularmente os trabalhos de Vladimir Losski e João Meyendorff). Ainda que virtualmente haja mais sobre este assunto que seja matéria de disputa, incluindo seu significado, sua história e sua legitimidade. O único sentido para se resolver estas disputas é dar uma história compreensiva da distinção das raízes Bíblicas e filosóficas em Palamas. A história, por outro lado, pode ser abordada através do conceito de energeia. 

                 No Ocidente o termo que pode ser quase comparado à energeia em sua importância para nossa discussão é esse, o Latim infinitivo para "ser". É bem conhecido que Agostinho identificou Deus com o Ser próprio em si mesmo, ipsum esse, e que Aquino fez esta desta identificação a pedra de toque de uma teologia natural cuidadosamente raciocinada. O que é bem menos conhecido é que o termo esse - particularmente no sentido dado por Aquino, que é o "ato de ser" - tem uma história de conexão com energeia. Os primeiros autores latinos a usar esse neste sentido foram Boécio e Caio Mário Vitorino. Eles, por sua vez,estavam simplesmente traduzindo para o Latim o idioma filosófico dos neoplatonistas gregos como Porfírio. Em particular, esse como o ato de ser é o equivalente direto do energein katharon Grego, o "ato puro" que Porfírio ou alguém em seu círculo (o autor do Comentário Anônimo sobre o Parmênides) identificou com o UNO. Isto significa que o esse em seu uso particular pode ser entendido como derivando de energeia. Claro que se pode levar em conta que  esse não se originou neste sentido, mas adquiriu certas ressonâncias adicionais, e que nem todas elas permaneceram operativas no uso posterior. No entanto, como quadro preliminar, pode-se pensar um tronco comum, energeia tal como aparece no Neoplatonismo, desdobrou-se em dois troncos: "energias" no Leste e "esse" no Oeste.

                  É apenas uma primeira aproximação. Parte do que fica de fora é que energeia tinha também um uso não filosófico que foi pelo menos tão importante para o desenvolvimento do pensamento oriental como foi a influência do Neoplatonismo. Este uso não filosófico pode ser encontrado nos escritos científicos e filosóficos, nos papiros Gregos sobre magia, e acima de tudo no Novo Testamento e nos primeiros Padres da Patrística. Para entender a distinção entre essência e energia requer-se observá-la à luz de uma história prévia. Uma história anterior ao neoplatonismo, pois o neoplatonismo mesmo é impossível de ser compreendido sem alguma apreciação de suas origens. Teses tais como o Uno está além do intelecto, ou que o intelecto é idêntico ao seu objeto, ou que o efeito pré existe na causa, são capazes de aplacar os leitores mais modernos como irremediavelmente obscuras até que se entenda sua relação a outros argumentos que os justificam. Pois a maior parte destes argumentos foi formulada primeiro por Platão e Aristóteles, ou fez uso de conceitos e de terminologias utilizadas por eles. Felizmente, já que nossa discussão gira em torno do termo energeia é suficiente começar com Aristóteles, que cunhou este termo.

                  Mais amplamente, há um modo de se concentrar exclusivamente na tradição cristã, examinando os desenvolvimentos prévios somente como um preâmbulo, o que distorce a história. Tanto os autores pagãos quanto os Cristãos estavam tratando das mesmas questões fundamentais, muitas vezes com base em uma ação compartilhada por um vocabulário comum e pelas mesmas ferramentas conceituais. Não se pode comparar o Comentário Anônimo e Vitorino, ou Jâmblico e os Capadócios, ou Proclus e Dionísio -ou, mesmo pelo assunto, Aristóteles e Aquino - sem reconhecer que o que eles têm em comum é tão importante quanto o que possuem de diferente. É apenas observando tanto a tradição oriental quanto a ocidental como a evolução de um patrimônio comum da metafísica clássica que ambas podem ser propriamente compreendidas.  Fazer isso também tem o mérito de desviar o foco da comparação nas questões dogmáticas e eclesiológicas, centrando-se nas questões metafísicas fundamentais. Se este livro não servir a nada mais do que isto, espero que mostre que este é o modo correto de análise, e que na falta disso não há como interpretar toda a questão da relação entre as duas tradições.  

                Tudo isso nos ajudará a explicar a estrutura do livro. Ele começa por traçar a raiz comum de ambas as tradições, de Aristóteles até Plotino (Capítulos 1-4); em seguida procura os desenvolvimentos preliminares no Ocidente (capítulo 5) e no Oriente (capítulo 6); e então traça o crescimento da tradição oriental (Capítulos 7 e 8); e finalmente completa ambas as tradições por meio de uma comparação sistemática de Agostinho, Aquino e Palamas (capítulo 9). O Epílogo toma o que este Prefácio deixa de fora, perguntando de que modo a comparação destas duas tradições pode lançar luz à nossa situação atual.

                 Poucas questões assépticas serão úteis ter em mente. Os leitores não habituados com os textos da patrística devem ser alertados que eles muitas vezes possuem dois sistemas de numeração que correm em paralelo. Assim, enquanto que Eneadas I.6.9 significa seção 9 do tratado 6 do livro I das Eneadas, De Trinitate X.8.II significa seção II ou capítulo 8 do  De Trinitate, dependendo de qual sistema esteja sendo usado. (Muitos editores dão ambas). Ao reconhecer as traduções, fiz uso de traduções disponíveis na medida do possível mas as alterei livremente a fim de manter a consistência terminológica e estilística. Isto é particularmente verdadeiro no caso das traduções antigas dos trabalhos patrísticos. Um ponto em que perdi toda esperança de consistência esteve na escolha dos títulos em Latim ou Inglês; eu os usei ambos indiscriminadamente, como determinado pelo uso comum. Eu, na maior parte das vezes, citei edições e traduções em formas abreviadas nas notas, reservando plena informação para a Bibliografia.

                 Capítulos 1 a 5 foram originariamente escritos como uma dissertação sobre o programa de filosofia antiga  da Universidade de Texas em Austin. Eu gostaria de agradecer os membros do meu comitê (R. J. Hankinson, Alexander Mourelatos, S. White, Robert Kane e Cory Juhl) pela condução do projeto. Eu também desejo agradecer John Bussanich, John Finamore, Harold Weatherby, Ward Allen e John Jones pelos vários comentários em várias partes dos capítulos finais. O Capítulo 2 foi originariamente publicado no Journal of the History of Philosophy, e parte do capítulo 5 no review of Metaphysics,  e partes dos capítulos 6 e 7 no Journal of Neoplatonic Studies. Eu agradeço aos editores destes jornais pela permissão de reeditar porções relevantes.

                 Por último, eu gostaria de reconhecer uma dívida de tipo distinto. A maior dificuldade em compreender a tradição do leste tem sido sempre que ela é muito profundamente fixada em uma vivência prática. Mesmo que falemos de "aspectos filosóficos" da tradição há sério risco de distorção. No Leste nunca existiu as mesmas divisões entre filosofia e teologia, ou teologia e misticismo, como no Ocidente, parcialmente porque estas divisões pressupõem um conceito de razão natural que é nele mesmo um produto da tradição ocidental. Para o historiador da filosofia, isto significa que ao se estudar o Leste, encontramos um grande desafio que não é normalmente parte de um território profissional: a discussão detalhada da teologia Trinitária; da oração, da prática ascética, da caridade para com o pobre, da exegese das Escrituras, frequentemente expressa em um vocabulário barrocamente complexo. A tarefa é desembaraçar os elementos reconhecidamente filosóficos de seu contexto sem distorcê-los ou evadi-los de seu significado. Eu não sei se eu tive sucesso, mas estou certo de que eu não teria iniciado, e não teria tido suspeita de como proceder, sem aqueles que me ensinaram alguma coisa do que esta tradição significa como vida prática. Entre eles, em primeiro lugar, minha esposa. Dizer que este livro é dedicado a ela é muito pouco, em minha própria mente, seu nome está escrito em cada página deste livro.

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