sábado, 2 de fevereiro de 2013

Pensamento Bizantino: Uma Introdução

O texto que posto agora possui as mesmas referências bibliográficas do anterior. Trata-se do capítulo V da referida obra de Basil Tatakis, páginas 65 a 79, que fala sobre o pensamento bizantino.

Meu amor pelo cristianismo ortodoxo nasceu já na minha infância e foi crescendo com o passar dos anos. Nascida numa família católica romana, entrei numa Igreja Ortodoxa pela primeira vez em 2003 e senti que lá era meu lugar. Nunca consegui, no entanto, seguir direito nenhuma religião. Isso não é uma defesa à negligência em matéria religiosa, é apenas a constatação de certa indisciplina minha.

Anos depois conheci um sérvio que se tornou meu esposo. Casei-me com ele na Igreja Ortodoxa, na Sérvia. Quem já viu qualquer ritual ortodoxo sabe a beleza e profundidade de cada gesto e mesmo de cada detalhe litúrgico. Não me converti ao cristianismo ortodoxo, por enquanto ainda o estudo, com profundo amor e dedicação. No meu blog teologiabizantina.blogspot.com.br apresento traduções da Filocalia e no blog escritoreseslavos.blogspot.com.br/ tento apresentar um pouco o trabalho de grandes teólogos ortodoxos.

Esse blog era para fazer menção maior à minha religião de origem, o catolicismo romano. Ainda que eu tenha grande interesse em Tomás de Aquino, teólogo admirável, por enquanto estou deixando a paixão falar mais alto e vou apresentar um pouco mais acerca da tradição ortodoxa. Se considerarmos que os ortodoxos são católicos também, mas não romanos, pois não reconhecem a supremacia papal e sim a primazia do bispo de Roma, então meu blog não possui qualquer inconveniência de nomenclatura.

Espero que meu trabalho sirva para apresentar ao público brasileiro (ou aos falantes em geral de língua portuguesa), vítimas muitas vezes de um cristianismo tão medíocre intelectualmente e espiritualmente tão estagnante, a possibilidade de conhecer outra tradição cristã, que, ainda que não possa ser seguida ou escolhida como opção para muitos, possa, por eles mesmos, ao menos, ser dignamente respeitada como convém.



Pensamento Bizantino: Uma Introdução

1) Do equívoco à restauração e apreciação.
O que nós dizemos até agora se relaciona ao pensamento cristão em geral ou ao movimento espiritual cristão dos primeiros séculos, especialmente no Leste. Agora, nós nos moveremos até Bizâncio. Apesar do período bizantino ter deixado de ser grandemente ignorado e de ser injustamente tratado por historiadores e frequentemente pela opinião comum, nós não podemos dizer que ele foi plenamente compreendido.

O equívoco fora sempre muito grave. Não devemos nos esquecer que a civilização moderna se vangloriou do fato de ter encontrado o poder durante o Renascimento, quebrando seus vínculos com a Idade Média. Foi no contexto da Idade Média que os Ocidentais viram Bizâncio, o qual eles não conseguiam compreender. Nós não devemos esquecer também as questões religiosas e políticas e os acontecimentos que envenenaram as relações entre os Ocidentais e os Bizantinos. As paixões que surgiram continuaram a viver por eras após a queda de Bizâncio e criaram condições que ainda nos afetam. Assim, a despeito de todo um trabalho feito, especialmente durante os últimos cem anos, de modo que Bizâncio possa ser corretamente compreendido e avaliado, as pesadas nuvens que surgiram do equívoco, da má interpretação e do preconceito, ainda não foram dissolvidas, mesmo em tempos modernos. É crédito da pesquisa acadêmica grega, por meio de muitos de importantes pesquisadores que se mantiveram como pioneiros, juntamente com um número seleto de estudiosos estrangeiros, o trabalho recente de restauração de Bizâncio.

2) Bizâncio, guarda e transmissor dos tesouros antigos gregos.
Hoje, nós estamos em uma posição para dizer que muitos aspectos da civilização bizantina foram vistos objetivamente e foram propriamente entendidos. Bizâncio deixou de ser visto meramente como o zelador dos tesouros da antiguidade Grega, ou como o guarda que manteve estes tesouros com diligência e amor, estudou-os com zelo, até que chegada a hora de seu desaparecimento da cena da história, esse tesouro foi transmitido aos novos povos do Ocidente, que, cheios de criatividade, usaram tais tesouros de modo a criar nossa moderna civilização. Sobre este ponto, nós podemos mencionar o justo comentário do historiador F. Lot que observou que "sem esta ideia engenhosa (ele quer dizer aqui a transposição da capital do Império Romano de Roma para Bizâncio) a civilização helênica teria sido extinguida... e dela teríamos conhecido apenas suas elegantes ruínas" (Prolegomena to the History of the Byzantine Empire, Adolf M. Haekkert, Amsterdam, 1969, footnote 1).

3) O legado distintivo bizantino
Porém esta grande guarda da Antiguidade Grega não pode exaurir a missão história de Bizâncio. Quando nós vemos apenas isso, negamos a Bizâncio toda a criatividade, o que não é correto. De fato, Bizâncio criou uma civilização com sua própria estampa, com unidade e multiplicidade, com maravilhoso brilhantismo, i. e. com características que apenas observamos nas verdadeiras grandes civilizações. Bizâncio deixou as marcas permanentes de sua civilização em sua passagem pela história, que nunca deixou de ser viva e ativa na alma de muitas outras pessoas, especialmente nos Ortodoxos, e nunca deixou de estimular e modelar grandes almas até nossos dias, como as de Dostoievski, Papadiamantis e Rilke.

A criatividade de Bizâncio foi encoberta pelos historiadores da arte, através do tratamento que deram à pintura bizantina, que por algum tempo deixou de ser vista como sem arte ou espalhafatosa, um repetição estereotipada de seus próprios tons convencionais, desprovida de todo conteúdo estético. A pintura  bizantina é vista agora como constituindo um novo grande período da arte, com sua própria textura e essência, com um desenvolvimento surpreendentemente rico e uma multiplicidade maravilhosa de formas e escolas, bem como seu próprio tipo especial de visão. Trabalhos semelhantes foram realizados em outros setores da civilização bizantina, mas não em todos eles. Apenas agora a atenção dos historiadores se voltou para a área do pensamento bizantino; por exemplo, apenas agora esta área atraiu a atenção dos historiadores. Os textos bizantinos relevantes que foram publicados e uma multidão de manuscritos não publicados ainda esperam seus leitores abertos, sem preconceitos, intérpretes e editores que os tragam à luz da cena contemporânea e os mostrem com muito maior extensão as várias etapas e os interessantes caminhos trilhados pelo pensamento dos bizantinos do que eu fiz no meu livro mais recente (La Philosophie Byzantine, Press Universitaires de France, Paris, 1949)

4) A civilização bizantina e a moderna
De um modo geral, a civilização bizantina em sua totalidade ainda não assumiu a posição que lhe pertence no mundo cristão, lugar não apenas no esforço de formar o espírito Cristão, mas também o homem moderno, um movimento que não começou realmente, como muitos pensam, com a Renascença. A prova para isso pode ser encontrada na rota que é ainda seguida pelo estudioso da civilização européia. Grécia- Roma- Idade Média Ocidental - Renascença: este são seus estágios essenciais. Ainda não se avaliou o quanto podemos ganhar com uma melhor compreensão da Idade Média Ocidental, da civilização árabe, da entrada dos eslavos na civilização e ainda mais da preparação para o Renascimento, depois de Roma, se fizermos uma grande parada para os longos séculos da vida civilizada de Bizâncio. O mesmo se aplica à filosofia, que é nosso interesse especial aqui, pois muito se ganharia com um estudo atento dos passos dados pela filosofia no pensamento dos bizantinos.

Durante o último século, os historiadores gregos, como Zambelios e Paparregopoulos solicitaram a necessidade de refutar a teoria alemã do século XIX, do historiador Jacob Fallmerayer (segundo a qual os gregos eram completamente eslavonizados durante a Idade Média), sendo os primeiros a ver a jornada histórica do helenismo (do antigo direito até nossos dias) como um movimento sem brechas e quebras e com uma unidade de vida de um mesmo povo, os Gregos. Isso recentemente tornou-se um ganho indisputável da ciência histórica; e se nós considerarmos quão importante posição o helenismo ocupa no tronco da história da humanidade, podemos entender então a grande significação, não apenas nacional mas internacional, que esta posição adquire, uma vez que a história do helenismo continuará a ganhar maior significação para todos os povos modernos.

5) Filosofia bizantina e a história da filosofia
O mesmo se aplica à história da filosofia. Os filósofos modernos habituaram-se a saltar dos filósofos Gregos para a Renascença, de modo a descobrir lá, como elas criam, os elos e o nascimento do empreendimento filosófico. Como mostramos antes, isso foi uma forma de entendimento limitada e desequilibrada. A Grécia Oriental, Bizâncio, oferece uma oportunidade única para seguir a transfiguração ou transformação da razão Grega para a razão Cristã. Aqui, nós vemos esta transubstanciação passo a passo. Em sua profundidade, a filosofia Bizantina constitui a forma Cristã da Razão grega e da Alma grega. Apenas se virmos o processo histórico neste sentido e entendermos o arsenal da razão, como ela foi formada em Bizâncio e na Idade Média Ocidental, seremos capazes de apreciar corretamente e plenamente medir o trabalho que foi consumado desde a Renascença até o presente. É, pois, um imperativo, se nós tivermos uma pintura plena do processo histórico da filosofia, que passemos de Roma a Bizâncio.


6) A postura espiritual da alma bizantina
Devemos afirmar claramente que Bizâncio não pode ser medido ou pelo mais moderno ou por nossas próprias medidas, ou mesmo pelas medidas da antiguidade clássica, como foi feito em algumas tentativas frívolas anteriores. A chave mais segura para o entendimento adequado de Bizâncio pode ser encontrado se escrutinarmos a postura espiritual da alma Bizantina. Esta é a postura que nos permite entender a unidade que governa todas as expressões criativas desta civilização. Pode ser que para as almas de alguns ou mesmo de muitos hoje, esta postura seja inaceitável. O estudante, no entanto, que deseje adquirir entendimento adequado desta questão ignorará ou superará este obstáculo. Isso se aplica a toda civilização em geral ou a todo trabalho criativo em particular, mas nem sempre a Bizâncio! Por quê? Enquanto nos é muito próximo - especialmente para os Gregos - ao mesmo tempo é radicalmente diferenciado em certos pontos; e isto é, talvez, por que, aparte as razões que mencionamos no início, a obtenção de objetividade para o estudante de Bizâncio transforma-se em uma luta muito difícil.

Qual é, então, a postura espiritual da alma Bizantina? "Se os Gregos antigos", diz o admirador alemão de Bizâncio Sir Galahad, "criaram o sonho mais maravilhoso para a vida, Bizâncio viveu no mais maravilhoso sentido o mistério da Cristandade" (Byzance, Paris, Payot, 1937). Aqui temos, em minha opinião, a chave para o entendimento de Bizâncio, que nos dá sua orientação psicológica, da qual são derivados todos os seus trabalhos criativos e que eles realmente expressam. Quando a Cristandade (resumo Galahad) estava muito maleável e buscava encontrar sua forma, ela se uniu ao Estado Romano. Esta união ocorreu na alma Grega e na atmosfera espiritual Grega. É por isso que foi dado o sagrado Estado Romano da nação Grega, que é Bizâncio. Este acontecimento podia acontecer apenas naqueles dias, quando a alma estava procurando sua salvação muito persistentemente e apenas naquela parte da terra que estava mergulhada numa frutífera tradição religiosa.

7) O Estado Bizantino como encarnação da Cristandade
O Estado Bizantino quis, em sentido de todas as suas atividades, ser uma encarnação da Cristandade, a realização na terra do oráculo Divino. É, porém, como Galahad muito aptamente observa, "uma expressão da tendência geral das pessoas mas ele não constitui uma teocracia a partir de cima, como um Estado teocrático do Leste. Preferencialmente, trata-se do esforço consciente em todas os assuntos em imitar a Ordem Divina, ou transcender a ordem natural. A convicção de que a Cristandade possui o todo, ou a verdade completa, e não apenas sementes dela, conduz o Estado Bizantino e sua sociedade a estabelecer suas operações, atos e instituições na perspectiva da eternidade. Assim, no Mosteiro de Studion (Constantinopla), monges que são 'indormíveis' (ακοιμητοι) rezam dia e noite para que os seres humanos nunca saiam do ritmo certo, mas preservem o contato com o céu. O Imperador aparece com roupas brancas, mais brancas do que a neve, quando outros estão em luto e vestem preto. Morte para ele é algo transparente, algo que já se conquistou. Ele está unido a uma multidão de pessoas de seu Império por meio do misticismo, a assim chamada quarta dimensão da alma, e não por meio de uma popularidade comum" (Galahad, op. cit., p. 49). Seus exércitos, em suas distantes expedições, na véspera da batalha, acendem velas que ficam na ponta de suas lanças, e de joelhos, sob a luz destas velas, cantam hinos sagrados para Deus durante a hora santa das Vésperas. Todas estas coisas, como tudo o mais, mostram claramente que a eternidade é mais tangível e ao mesmo tempo a mais concreta realidade em que a Sociedade Bizantina colocou as fundações de sua vida.

8) A paixão bizantina pela verdade religiosa
Esta é a razão de vermos Bizâncio, desde o Imperador até o último servo e artesão, ser movido profundamente com emoção e sofrimento aos grandes problemas espirituais que se referem à toda sua realidade sagrada, a um tal grau e persistência que ambos constituem um fenômeno único, que merecem muito mais atenção e têm de longe maior significância do que nós temos dado. O grande inciador da sabedoria Cristã, o teólogo Gregório de Nissa, irmão do grande Basílio, expressa seu espanto e intensidade apaixonada em como as discussões teológicas tinham tomado toda a população, e satiriza no texto seguinte:

"E agora há aqueles que, à semelhança dos atenienses, não têm tempo para qualquer outra coisa senão falar e ouvir alguma coisa nova; pessoas de ontem ou do dia anterior, que estão vindo de ocupações selvagens, tornam-se de improviso dogmáticos teólogos, alguns funcionários provavelmente domésticos, que se sentem mestres em seus chicotes, desandam a palestrar para nós sobre coisas incompreensíveis. De qualquer modo, não se consegue ignorar as pessoas às quais me refiro. De fato, todo lugar na cidade, as ruas estreitas, os mercados, as esquinas, a vizinhança são todas cheios de tais pessoas; revendedores de roupas segunda mão, cambistas, comerciantes desonestos de bens domésticos. Se você perguntar a qualquer um deles sobre dinheiro, eles sempre produzirão um discurso filosófico sobre o gerado e o não-gerado (Περι  γεννητου και  αγεννητου); e se você procura saber o preço do pão, você obterá a seguinte resposta, 'O Pai é maior e o Filho, subordinado'. Se, novamente, você fosse dizer que o aparato para tomar banho é confortável, você será instruído que o Filho está fora de tudo (Εξ ουκ οντων). Eu não sei se chamo isso de mal, frenesi ou loucura, ou um tal mal epidêmico que causa perversão do pensamento humano" (PG 46, 557)

Esta ligação, esta dedicação total da alma para objetos espirituais mais elevados, que se tornou objeto da sátira de Gregório de Nissa por conta de seu desvio heterodoxo, constitui a chave segura para o entendimento da civilização bizantina. Tal ligação regula a vida em suas principais manifestações, é elogiada pelos hinógrafos, é cantada pelos melodistas, é expressada pelos pintores e arquitetos, enquanto os pensadores procuram capturá-la e formulá-la. Isto é finalmente o que concede a maravilhosa unidade que apresenta a civilização Bizantina, a característica infalível da grande civilização.

9) O laço entre unidade e multiplicidade
Estudiosos não compreenderam ainda o significado desta estreita unidade da civilização bizantina e acostumaram-se a vê-la, como um organismo de um único órgão, uniforme e sem desenvolvimento. Mas, como dissemos, foram os historiadores da arte os primeiros a serem capazes de entender a textura especial da arte bizantina, a descobrir no interior desta unidade, uma variedade maravilhosa, multiplicidade e movimento. Estou certa que o mesmo se aplica ao pensamento bizantino. Ele nem é de um único órgão, nem sem desenvolvimento, porque até o fim ele pretende tratar de questões dogmáticas e teológicas. Isto é exatamente o que eu tentei mostrar em meu trabalho que eu já mencionei. Há uma diferença no modo como o místico e o racionalista manejam a mesma questão, embora nenhum deles se afaste do dogma. Novamente, o herético tem seu próprio caminho. Então, um aspecto é examinado por um e outro pelo outro. Nunca surge na mente de alguém se perguntar, por exemplo, porque todos os físicos investigam os fenômenos físicos, ou dizer que seu penamento é de um único órgão, sem desenvolvimento. Mas isso é o que foi dito do pensamento bizantino, está ainda sendo dito por aqueles que fracassam em compreender sua profundidade. É nossa conclusão, então, que alguém que deseje proceder com o estudo do pensamento bizantino deva conhecer que a razão bizantina é supremamente religiosa. Com tal pressuposição, pode-se entendê-la como uma religião e também como uma filosofia cristã.

10) O início do pensamento bizantino
Quando o pensamento bizantino começou? A vida espiritual dos primeiros quatro séculos e meio, a despeito da diferenciação anterior entre Leste e Oeste, e mesmo depois da transposição da capital de Roma para a nova Roma (Constantinopla) em 325 d.C. preserva uma unidade que demanda uma investigação particular desta vida como um esforço comum para o estabelecimento da Cristandade. Logo, nós não podemos chamar este período de Bizantino em sua parte oriental, nem mesmo durante o quarto século. A invasão dos Bárbaros no Ocidente durante o quinto século e consequentemente, a dissolução do Estado Romano Ocidental, criou um novo estado de coisas. A partir de então, apesar de ambos os mundos, Leste e Oeste serem Cristãos, cada um deles seguirá seu próprio sentindo distinto e separado. É desde o século sexto em diante que se pode falar no Ocidente sobre Helenismo. Os ocidentais primeiro esqueceram, depois se tornaram ignorantes dos gregos, chegando a perder contato com a tradição grega. Muitos séculos se passarão antes que uma preparação apropriada possa ganhar lugar na alma destas pessoas, o que os fará novamente procurar e descobrir os Gregos; e quando isso ocorrer, os gregos saciarão sua alma sedenta com água rica e frutífera e empurrá-los no caminho de grandes acontecimentos. Os Bizantinos, como dissemos, são aqueles que num ponto do tempo darão os Gregos aos Ocidentais, já que em Bizâncio a tradição grega nunca deixou de estar viva. Ela foi incorporada no mundo bizantino e veio a constituir uma das principais artérias de sua vida. O estudo de Homero e dos filósofos nunca foi abandonado. Esta é a diferença fundamental que separa o Leste do Oeste no quinto século em diante e em muito explica os caminhos que desde agora os dois seguirão. Esta diferença apenas pode ser suficiente para nos ajudar a fixar como o marco inicial para a civilização bizantina e o pensamento bizantino o fim do quinto século.

11) O helenismo cristianizado de Bizâncio
Nós insistiremos um pouco mais nesse ponto, porque ele constitui uma das diferenças mais básicas entre Bizâncio e o Ocidente. É óbvio que os Bizantinos não receberam a tradição Grega em a sua completude. Se o tivessem feito, teriam deixado de ser cristãos. Antes, todo  que eles receberam ganhou um novo conteúdo, por ser introduzido em sua própria vida cristã. É precisamente este novo conteúdo que testifica a originalidade de sua civilização. Mas também o elemento que eles receberam nunca deixou de especificar por sua vez o pensamento dos bizantinos. Tem-se, então, uma dupla operação, onde os Cristãos escolhem certas teses da filosofia grega que passam a adquiri um novo conteúdo com a síntese cristã e que, ao mesmo tempo, abrem novos sentidos de pensamento.

Para dar um exemplo, é no Oeste que o adjetivo "católico" como na "Igreja Católica" vem principalmente significar a Igreja que é espalhada entre todas as pessoas e todos os lugares da terra, i. e., o termo "católico" tem um significado quantitativo. Nós podemos ver isso na linguagem do Império Romano que influenciou tanto a formação da Igreja do Ocidente. Este mesmo adjetivo possui diferentes significados na Igreja Oriental, que não é quantitativo, mas qualitativo. Ele denota uma Igreja que possui a plenitude, a verdade completa e não apenas suas sementes; denota em seu sentido mais profundo a união do homem com o todo, isto é, aquilo que a Cristandade objetivava. O principal objeto do pensamento filosófico no Oriente, em Bizâncio, é a tentativa para compreender o todo, ou a ordem universal e o lugar que o homem possui nela.
Esse é o mesmo objetivo principal da filosofia grega, mas não mais com um significado cosmológico, mas com um conteúdo espiritual cristão. E esta é a razão de ser certo falarmos em Filosofia Bizantina, como eu já falara, a forma cristã da filosofia grega.

12) O impacto do passado e as necessidades do presente
Devemos notar agora que esta referência mais próxima de Bizâncio à tradição Grega não era sem riscos. Ela se manteve um obstáculo para a exploração mais criativa dos novos elementos que o ensinamento cristão importou. Ela fortaleceu o espírito conservativo dos Bizantinos muito mais do que foi requerido. O problema mais importante e mais difícil para qualquer civilização é manter o impacto do passado e as novas demandas do presente em um tal equilíbrio que a criação de novos trabalhos não seja obstruída, embora ela esteja enraizada com o que foi recebido, encarnando assim e expressando as demandas do presente.

13) A luta pela primazia entre a retórica e a filosofia
Deve-se apontar algumas características perigosas que os Bizantinos não rejeitaram. Para se fazer isso nós temos de tomar certa distância. No século II, o famoso sofista Aelius Aristides defendeu com sucesso a visão de que a educação da retórica, que faz dele um mestre no método da linguística, era superior à educação do filósofo. Ele argumentou que a primeira era muito mais eficaz, multilateral e é mais benéfico. Confrontado com a retórica, o filósofo, que é restrito apenas ao uso das armas lógicas, é unilateral, incapaz de se engajar nas lutas da vida, e inefetiva. Este é o velho grande problema que separa Platão e os Sofistas, mas apresentado agora em uma nova forma. Para Aelius Aristides, o homem perfeito é formado não pela filosofia, mas pela retórica, que desenvolve suas habilidades. Esta visão, naturalmente, concede um conteúdo mais largo à retórica, enquanto inevitavelmente torna a filosofia  intoleravelmente estreita, restringindo-a, como diríamos hoje, apenas ao funcionalismo técnico.

Nós, no entanto, não pararemos neste ponto, mas em outro. Falar neste sentido sobre retórica significa que a razão é principalmente vista em sua relação com o ouvinte. O retórico é melhor educado porque ele possui  o modelo ou o molde da razão; e com o grande poder que a razão dá àqueles que a possuem, pode-se persuadir seus ouvintes. Neste sentido, no entanto, a razão torna-se uma matéria externa e uma arma, como uma espada. Assim, a luta interna da razão - razão em sua luta interna com a realidade - escapa a atenção daqueles que defendem a retórica, que o vê no contexto do homem como um ouvinte. A luta real, porém, é conectada com a conquista da realidade, a verdade, e não com a persuasão, ou, como Sócrates coloca, a primeira é melhor mesmo para o próprio homem. Estas observações são suficientes para mostrar que tipo de espírito prevaleceu na educação durante os primeiros séculos da era cristã, pois Aélios Aristides exerceu uma grande influência. Os mais importantes representantes dessa tendência foram os sofistas, que eram então famosos professores de universidades. É este espírito que é também inspirado pelas diatribes, os sermões, isto é, os Estoicos e Cínicos. Este é também o espírito que os Cristãos aceitaram sem muita dificuldade. Isto foi natural, já que seu discurso era ao mesmo tempo principalmente a pregação de uma nova religião e não a investigação dela. Nós não devemos esquecer que muitos dos grandes Pais da Igreja eram discípulos dos Sofistas.

A ligação bizantina com o aticismo
Esta volta á forma da razão, a preferência pela retórica, foi rapidamente aliada com outro formalismo, que vai pelo nome do 'aticismo' (αττικισμος). Muito rapidamente, os autores cristãos, seguindo os pagãos, vangloriaram-se de suas habilidades para escrever na forma Ática, para imitar a linguagem ática dos autores clássicos. Assim, Aeneas Gazaeus (de Gaza, Palestina, que foi um importante centro de estudos clássicos durante os séculos quinto e sexto), congratula Teodoro o Sofista pelo seu bom estilo linguístico que fizeram as crianças dos Atenienses que vieram de gaza aprender como aticizar. Esta volta ao Atticismo, que com algumas flutuações, preservou-se até o fim de Bizâncio, foi decisiva para o desenvolvimento tanto da prosa quanto do pensamento dos Bizantinos. Sua alma, voltada ao passado, fascinada pela forma literária alcançada pelo discurso ático, acabou esquecendo e negligenciando seus próprios tesouros. O que a impediu de tentar novas formas, de dar nova forma às suas criações. A literatura bizantina como um todo teria certamente apresentado uma pintura diferente se tivesse seguido os Evangelhos em sua forma literal.

O aticismo testemunhou mais do que qualquer outra coisa para o poder grande e imponente da literatura grega. Nós podemos facilmente entender e explicar porque os autores pagãos eram aticistas; mas para os autores cristãos ser aticista e mesmo forte defensor do aticismo, como nós vemos no caso de Aeneas, pode apenas ser explicada pelo reconhecimento que eles não podiam ser libertados do poderoso impacto da palavra Grega. Eles se esqueceram que a palavra do Evangelho foi atualmente dirigida para o povo simples, 'aos tolos' e que ela veio superar a sabedoria cultivada dos sábios da terra, sendo por isso vista como loucura. Eles abandonaram como imprecisa a linguagem do Evangelho e despiram seus pensamentos com o embelezamento do discurso ático.

15) Retórica bizantina, aticismo e filosofia
Pode-se perguntar, porém, "qual relação há entre filosofia e o amor pela retórica e aticismo?" Para isso nós podemos responder que filosofia não é expressa por símbolos numéricos ou designs geométricos como a matemática. Na matemática, o papel da fala é muito pequeno e mesmo insignificante. Filosofia, porém, é expressa com palavras. Em sua forma mais elevada, é sempre uma expressão espontânea de silogismos. Quando, consequentemente, ela procura encontrar em outros os protótipos da forma de seu discurso, ela incorre sobre um efeito prejudicial para seu próprio pensamento. Então a forma não é uma modelagem externa, mas é hermeticamente limitada pelo conteúdo e como tal, é preenchida com substância real. Nós entendemos isso bem quando nós comparamos textos de filósofos que pertencem à mesma época como, por exemplo, aqueles de Platão e Aristóteles.

Este foi um preço alto pelo qual Bizâncio pagou deixando sua alma transformar o passado mais do que deveria ter feito. Nós não devemos, porém, exagerar neste ponto. Quando as grandes personalidades de Bizâncio sentiram suas almas preenchidas com a Iluminação da luz do Evangelho, eles ficaram muito próximos, de fato, à linguagem do Evangelho. Por exemplo, o grande Crisóstomo escreveu seus profundos sermões com a simplicidade evangélica, enquanto Máximo o Confessor (século sétimo) foi rebatizado na fonte original. O austero Fócio achou sua linguagem inadequada. Mas nós podemos também mencionar como exemplos muitos dos autores místicos e ascéticos.

16) O início da tradição cristã e a ortodoxia em Bizâncio
No entanto, não é apenas a tradição grega que exerceu uma influência restritiva em Bizâncio. O mesmo foi feito, como podia ser esperado, pela tradição cristã dos primeiros séculos cristãos em outras áreas essenciais. Obviamente que me refiro à tradição que começou a tomar forma já no Primeiro Sínodo Ecumênico (Nicea, 325 d.C.), a tradição da Ortodoxia. Desde o início, Bizâncio subjugou-se à Ortodoxia, com alguns altos e baixos. O quinto Sínodo Ecumênico (Constantinopla, d.C. 553) especifica com sua denúncia o contexto no qual o pensamento teológico é agora convocado a proceder. Bizâncio deseja ser Ortodoxo. A Ortodoxia passa a ser de agora em diante a principal estima do pensamento bizantino. É a ortodoxia que dá o o tom, e é em torno disso que todas as batalhas espirituais terão vez. O objetivo principal dos primeiros séculos cristãos era estabelecer como a Cristandade e como seu espírito poderiam ser apreendidos. O interesse principal será agora como apreender e expor a Cristandade Ortodoxa. O espírito não era incerto, e obviamente ausente neste novo período. Novos movimentos ocorreram, e novas visões foram expressas, que muitas vezes vieram a perturbar a tranquilidade espiritual e forçaram a mente em profundas investigações. Tais movimentos, também se tornaram aceitos, depois de intensa luta, como o Hesicasmo (no século XIV) ou foram reprovados e rejeitados quando a investigação os expunha como heréticos ou prejudiciais (como o Monotheletismo, Iconoclasmo, Paulicianismo, etc. )

É importante, creio, lembrar-nos neste ponto aqueles elementos que testemunham a imposição sobre Bizâncio das tradições grega e cristã dos primeiros séculos cristãos e que deram o contexto no qual o pensamento Bizantino se movia, bem como a sinalização que definiria e escolheria seu trabalho.

3 comentários:

  1. Excelente texto, muito rico em detalhes! confesso que tenho muita admiração pela ortoxia!

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  2. Quiça, algum dia a cristandade brasileira para desperte para o conhecimento histórico no qual fora abortada e marginalizado pela reformar protestante! O que o reformadores fizeram foi extremamente danoso!

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  3. Pois é! A Igreja está evadida de seu próprio passado! Isso é muito triste!

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